- Que tipo de homem era?
John Rance pareceu um pouco irritado com essa digressão.
- Era o tipo do beberrão. Teria sido levado ao posto policial, se não estivéssemos tão ocupados.
- Seu rosto, sua roupa, notou como eram? - rompeu Holmes com impaciência.
- Notei, sim. Tive de pô-lo em pé, com a ajuda de Murcher. Era um sujeito alto, com rosto avermelhado, a parte de baixo encoberta...
- Basta! - gritou Holmes. - O que foi feito dele?
- Tínhamos mais o que fazer para ficar tomando conta dele - respondeu o policial com um tom ofendido. - Deve ter encontrado o caminho de volta para casa.
- Como estava vestido?
- Um casacão marrom.
- Tinha um chicote na mão?
- Um chicote... não.
- Deve tê-lo largado em algum lugar - murmurou meu companheiro. - Por acaso viu ou ouviu barulho de um carro depois disso?
- Não.
- Aqui está meio soberano para você – disse Holmes, pondo-se de pé e pegando o chapéu. - Temo, Rance, que você não fará carreira na polícia. Devia usar a cabeça, em lugar de tê-la apenas como enfeite. Podia ter ganho sua divisa de sargento ontem à noite. O homem que teve nas mãos é quem tem a chave do mistério, é aquele que estamos buscando. Não há por que ficar discutindo isso agora, mas sei o que estou dizendo. Venha, doutor.
Saímos em direção ao carro, deixando nosso informante um tanto incrédulo e, sem dúvida, nada confortável.
- Que grande idiota! - Holmes exclamou acre-
mente, enquanto voltávamos para casa. - Pensar que teve uma oportunidade dessas e não soube aproveitá-la!
- Ainda estou sem entender. A descrição do homem corresponde à sua idéia sobre a segunda personagem no misterio. Mas por que ele voltaria para casa depois de ter saído de lá? Não é o que os criminosos costumam fazer.
- A aliança, homem, a aliança! Foi por isso que ele voltou. Se não tivermos outra maneira para pegá-lo, sempre poderemos atraí-lo com essa jóia. Eu vou pegá-lo, doutor, aposto dois contra um que vou pegá-lo. Tenho que lhe agradecer por tudo. Eu não teria vindo, não fosse por você. E teria perdido o mais interessante estudo com que já me deparei: um “Estudo em vermelho”, hein? Por que não usarmos um pouco a linguagem artística? O fio vermelho do crime entremeia-se à meada descolorida da vida. Nossa missão é desenrolá-lo, isolá-lo, expondo-o em toda sua extensão. E, agora, vamos ao almoço e, depois, assistir Norman-Neruda. Suas introduções e toda sua execução são esplêndidas. Como é aquela pecinha de Chopin, que ele toca de forma tão genial? Tra-lá-lá-lira-lira-lá.
Recostado no carro, o cão de caça amador cantarolava tal qual uma calandra, enquanto eu meditava sobre as múltiplas facetas da mente humana.
Capítulo 5
nosso anúncio atrai um visitante
As atividades daquela manhã haviam sido excessivas para minha saúde abalada e, à tarde, eu estava exausto. Depois que Holmes saiu para o concerto, deitei no sofá, pretendendo dormir umas duas horas. Foi inútil. Estava demasiado excitado com tudo o que acontecera e minha mente se enchera das mais estranhas fantasias e suspeitas. Fechava os olhos e via diante de mim a fisionomia contraída e simiesca do homem assassinado. Tão sinistra fora a impressão produzida por aquele rosto que me era difícil sentir qualquer coisa que não fosse gratidão por quem retirara seu dono desse mundo. Se alguma vez feições humanas revelaram o vício em sua forma mais maligna, foi, sem dúvida, nos traços de Enoch J. Drebber, de Cleveland. Reconhecia, no entanto, que era preciso haver justiça e que a depravação da vítima não constituía atenuante aos olhos da lei.
Quanto mais pensava no caso, mais extraordinária me parecia a hipótese de meu companheiro de que o homem havia sido envenenado. Lembrava como havia cheirado os lábios do morto e não duvidava de que havia detectado algo que fundamentasse essa idéia. Se não fosse veneno, o que teria causado a morte do sujeito, já que não estava ferido nem apresentava marcas de estrangulamento? Por outro lado, de quem seria todo aquele sangue derramado no chão? Não havia sinais de luta, nem a vítima possuía qualquer arma com a qual pudesse ter ferido o antagonista. Sentia que, enquanto todas essas questões permanecessem sem resposta, não seria fácil para mim nem para Holmes conciliar o sono. O comportamento sereno e autoconfiante de meu amigo convenciam-me de que ele havia formado uma teoria que explicava todos os fatos, embora eu não pudesse imaginar, sequer por um instante, que teoria era essa.
Holmes voltou bem tarde, de modo que não poderia ter estado no concerto o tempo todo. O jantar já estava servido quando ele chegou.
- Foi magnífico! - comentou ao sentar-se. - Lembra-se do que Darwin{8} disse sobre a música? Afirmou que o poder de produzi-la e apreciá-la existiu na raça humana antes mesmo da língua. Talvez por isso sejamos tão influenciados por ela. Há, em nossas almas, vagas memórias daqueles séculos nebulosos em que o mundo vivia sua infância.
- Essa, de fato, é uma idéia bastante ampla...
- Nossas idéias precisam ser tão amplas quanto a natureza, caso queiramos interpretá-la - respondeu.
- O que há? Você não parece tranqüilo. O caso de Brixton Road o perturbou.
- Para ser sincero, sim. Era para eu ter ficado menos sensível após as experiências no Afeganistão: Vi companheiros serem feitos em pedaços na batalha de Maiwand sem perder o controle.
- Entendo isso. É que neste caso há um mistério estimulando a imaginação. Quando não há imaginação, não há horror. Viu o jornal da tarde?
- Não.
- Traz um relato bastante bom do caso. Mas não menciona o fato de que, quando o corpo foi erguido, uma aliança de mulher caiu no chão. Ótimo que não o tenha feito.
- Por quê?
- Olhe este anúncio - respondeu. – Mandei um para cada jornal após os acontecimentos desta manhã.
Estendeu-me o jornal e olhei para o lugar indicado. Era o primeiro anúncio da coluna “Achados”.
Foi encontrada uma aliança de ouro, esta manhã, em Brixton Road, entre a Taverna White Hart e Holland Grove. Entrar em contato com Dr. Watson, Baker Street, 221 B, entre oito e nove da noite.
- Desculpe-me por ter usado seu nome - disse.
- Se tivesse usado o meu, algum desses policiais idiotas iria reconhecê-lo e se intrometer no assunto.
- Tudo bem. Mas suponha que apareça alguém. Não tenho aliança nenhuma.
- Ah, sim, você tem - disse, entregando-me uma. - Esta servirá. É quase idêntica à verdadeira.
- E quem você espera que responda ao anúncio?
- Ora, o homem do casacão marrom. Nosso corado amigo das biqueiras quadradas. Se não vier em pessoa, mandará um cúmplice.
- Não vai achar perigoso demais?
- De jeito nenhum. Se minha teoria sobre o caso estiver correta, e tenho todos os motivos para achar que está, esse homem arriscará qualquer coisa para não perder a aliança. Minha tese é de que ele a deixou cair enquanto se debruçava sobre o corpo de Drebber e, na hora, não percebeu. Só depois de ter deixado a casa, descobriu que a perdera e voltou com pressa, mas a polícia já estava no lugar, graças a sua falha de deixar a vela acesa. Teve, então, que fingir uma bebedeira para afastar as suspeitas que sua presença no portão poderia levantar. Agora, ponha-se no lugar dele. Recapitulando tudo, deve ter achado possível ter perdido a aliança no caminho, após ter deixado a casa. O que terá feito, então? Deve ter procurado ansiosamente nos jornais da tarde, nos anúncios de achados e perdidos, na esperança de encontrar alguma coisa. Seus olhos devem ter brilhado quando encontrou meu anúncio. Deve ter exultado. Por que temeria uma armadilha? A seus olhos, nada há que conecte o achado da aliança com o assassinato. Deve vir. Virá e você vai vê-lo dentro de uma hora.