- As fontes ficam à direita, irmãos - disse um deles, de lábios salientes, cabelo grisalho e rosto bem barbeado.
- Seguindo pela direita de Sierra Blanco, alcançaremos o Rio Grande - disse outro.
- Não temam a falta d'água! - exclamou um terceiro. - Aquele que a fez brotar das pedras não abandonará os seus eleitos!
- Amém! Amém! - responderam todos.
Iam prosseguir a viagem quando um dos mais jovens e de visão mais apurada exclamou, apontando para o penhasco escarpado acima deles. No alto da rocha, ondulava algo rosado, cujo brilho contrastava com o fundo cinza das pedras. Diante dessa visão, todos sofrearam os cavalos e prepararam as armas. Novos cavaleiros vieram a galope para reforçar a vanguarda. A palavra “peles-vermelhas” estava em todas as bocas.
- Não pode haver índios aqui - disse o homem mais velho, que parecia estar no comando.
- Já passamos pelos Pawnees e não há outras tribos antes das grandes montanhas.
- Vou até lá verificar, Irmão Stangerson – disse um do grupo.
- Eu também! Eu também! - gritaram muitas vozes.
- Deixem seus cavalos aqui embaixo. Ficaremos aguardando - disse o homem mais velho.
Nesse mesmo momento, os cavaleiros jovens desmontaram, prenderam seus cavalos e iniciaram a subida daquela íngreme encosta que despertara a curiosidade do grupo. Avançaram rápidos e silenciosos, com a segurança e a habilidade de exploradores experientes.
Da planície lá embaixo, os outros podiam vê-los saltando de pedra em pedra, até que seus vultos se destacassem contra o céu. O jovem que dera o alarme os guiava. De repente, seus seguidores viram-no erguer os braços, como se algo o tivesse espantado. Quando se juntaram a ele, reagiram do mesmo modo diante da cena que seus olhos descortinavam.
No pequeno platô que existia no cimo da elevação, havia um grande e solitário rochedo. Nele estava estendido um homem alto, com feições marcantes, barba comprida e em estado de grande fraqueza. A placidez do rosto e a regularidade da respiração revelavam que dormia. A seu lado, estava deitada uma menininha.
Seus braços alvos e roliços abraçavam o pescoço escuro e másculo do homem. A cabecinha de cabelos dourados descansava contra o peito de sua túnica de veludilho. Os lábios rosados da menina estavam entreabertos, mostrando uma fileira regular de dentes brancos e um sorriso travesso pousado nas feições infantis. Nas perninhas claras e gordas vestia meias brancas e sapatos finos com fivelas reluzentes, em estranho contraste com os membros compridos e esquálidos de seu companheiro. Na borda do rochedo, acima desse estranho par, pousavam solenemente três abutres que, ao perceberem os recém-chegados, soltaram roucos gritos de decepção e alçaram vôo de imediato.
Os gritos das aves repugnantes despertaram os adormecidos, que olharam ao redor espantados. O homem pôs-se de pé vacilante e olhou para a planície, tão desolada no momento em que adormecera e, agora, tomada por grande quantidade de homens e animais. Seu rosto assumiu uma expressão de incredulidade e ele passou a mão ossuda sobre os olhos.
- Deve ser isto o que chamam de delírio - murmurou.
A menina ficou a seu lado, agarrada a sua túnica, e nada dizia, mas olhava tudo com o olhar espantado e inquiridor da infância.
O grupo de resgate, porém, logo os convenceu de que seu aparecimento não era ilusão. Um deles pegou a criança e colocou-a no ombro, enquanto outros dois seguraram seu esquálido companheiro, ajudando-o a dirigir-se às carroças.
- Meu nome é John Ferrier - explicou o andarilho. - Eu e a menina somos os sobreviventes de um grupo de vinte e uma pessoas. Morreram todos de fome e de sede lá na direção sul.
- É sua filha?
- Acho que agora é - respondeu desafiante. - É minha porque eu a salvei. Ninguém vai tirá-la de mim.
Chama-se Lucy Ferrier, de agora em diante. E vocês, quem são? - prosseguiu, olhando com curiosidade para seus robustos e bronzeados salvadores. – Parece que formam uma multidão.
- Somos uns dez mil - dísse um dos jovens. - Somos os perseguidos filhos de Deus, os escolhidos do Anjo Merona.
- Nunca ouvi falar nele - disse o andarilho. - Parece ter escolhido um bando de gente.
- Não zombe do que é sagrado - disse o outro, ressentido. - Acreditamos nas sagradas escrituras gravadas em caracteres egípcios em lâminas de ouro batido e entregues ao santo Joseph Smith, em Palmira. Viemos de Nauvoo, no estado de Illinois, onde erguemos nosso templo. Buscamos um refúgio para nos abrigar dos homens violentos e sem Deus, mesmo que esse abrigo seja no coração do deserto.
O nome Nauvoo evidentemente evocou lembranças em John Ferrier.
- Entendo - disse. - Vocês são mórmons.
- Sim, somos mórmons - responderam a uma só voz.
- E para onde estão indo?
- Não sabemos. A mão de Deus nos guia na pessoa de nosso Profeta. Você irá vê-lo. Ele dirá o que faremos com você.
Estavam, agora, na base da elevação e uma multidão de peregrinos os cercavam: mulheres de rostos pálidos e humildes; crianças saudáveis e alegres; homens sérios e impacientes. Muitas foram suas exclamações de surpresa e de piedade quando perceberam a tenra idade da menina e o estado miserável do homem. A escolta de ambos não parou, foi em frente, seguida por grande quantidade de mórmons, até chegar a uma carroça que se distinguia das demais pelo tamanho maior e pela aparência suntuosa e cuidada. Puxavam-na seis cavalos, enquanto as demais estavam atreladas a dois ou, no máximo, quatro animais. Ao lado do cocheiro sentava-se um homem que não devia ter mais do que trinta anos, mas que tinha a cabeça sólida e a expressão resoluta próprias de um líder. Estava lendo um livro de lombada escura, mas deixou de fazê-lo com a aproximação de toda aquela gente. Ouviu atentamente o relato do episódio. Voltou-se então para os dois extraviados.
- Se nós os levarmos conosco - falou com solenidade -, será como crentes em nossa religião. Não temos lobos em nosso rebanho. Será melhor que seus ossos se calcinem no deserto a que se transformem no início de putrefação que irá corromper a fruta toda.
Virão conosco sob essa condição?
- Irei com vocês sob quaisquer condições - respondeu Ferrier com tal ênfase que mesmo os graves Anciãos{13} não puderam evitar um sorriso.
Somente o líder manteve seu ar severo e impressionante.
- Encarregue-se dele, Irmão Stangerson - disse.
- Dê-lhe comida e bebida, e à criança também. Igualmente será responsabilidade sua iniciá-lo em nosso credo sagrado. Já nos atrasamos muito. Em frente! Em frente para Sião!
- Em frente! Em frente para Sião! - gritou a multidão de mórmons.
As palavras ecoaram ao longo da extensa caravana, passando de boca em boca até definhar em um confuso murmúrio a distância. Estalaram os chicotes, as rodas rangeram. As carroças começaram a mover-se e logo a caravana serpenteava mais uma vez deserto afora.
O Ancião a quem os dois resgatados haviam sido confiados levou-os para sua carroça, onde uma refeição os aguardava.
- Vocês devem ficar aqui - disse. - Em poucos dias estarão recuperados dessa exaustão. Enquanto isso, lembrem-se de que, de agora em diante, pertencem a nossa religião para sempre. Foi Brigham Young quem disse, e ele falou com a voz de Joseph Smith, que é a voz de Deus.
Capítulo 2
a flor do utah
Este não é o lugar para rememorar as provações e as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes mórmons até alcançar seu paraíso final. Das margens do Mississípi às escarpas ocidentais das Montanhas Rochosas, eles lutaram com uma persistência quase sem precedentes na história. Os selvagens, os animais ferozes, a fome, a sede, a fadiga, a doença, todos os obstáculos que a natureza podia colocar no caminho foram vencidos pela tenacidade anglo-saxônica. No entanto a longa viagem e os freqüentes temores abalaram mesmo os mais fortes entre eles. Não houve um só que não caísse sobre os joelhos, em fervorosa oração, à vista do amplo vale de Utah banhado de sol, e ouvindo da boca de seu líder que aquela era a terra prometida e que aqueles campos virgens seriam deles para todo o sempre.