Mas o que era aquilo? Ouvira um leve ruído de arranhadura, baixinho, mas bem perceptível no silêncio da noite. Vinha da porta da casa. Ferrier esgueirou-se até o vestíbulo e ficou ouvindo atentamente. Houve uma pausa durante alguns minutos e, então, repetiu-se o som baixo e insidioso. Sem dúvida, alguém estava batendo suavemente na almofada da porta. Seria o assassíno que, no meio da noite, vinha cumprir as ordens criminosas do tribunal secreto? Ou algum agente marcando a chegada do último dia da graça? John Ferrier concluiu que a morte repentina seria melhor que a expectativa que lhe abalava os nervos e lhe gelava o sangue. Deu um salto à frente, puxou o ferrolho e abriu a porta de relance.
Lá fora tudo estava calmo e silencioso. Era uma linda noite e as estrelas piscavam brilhantemente no céu.
O pequeno jardim estendia-se diante dos olhos do fazendeiro cercado pelo portão e pelas grades. Mas nele ou na estrada não havia qualquer ser humano. Ferrier, com um suspiro de alívio, olhou para a esquerda e para a direita até que, baixando os olhos em direção a seus pés, viu, com o maior espanto, um homem de bruços estendido no chão, braços e pernas estendidos.
Tão nervoso ficou que teve que encostar-se contra a parede, levando a mão à garganta para refrear o desejo de gritar. Seu primeiro pensamento foi que aquele homem prostrado era um moribundo ou um ferido, mas pôde logo observar que ele rastejava pelo solo rápido e silencioso como uma serpente. Quando entrou em casa, ergueu-se, fechou a porta e mostrou ao fazendeiro atônito o rosto corajoso e a expressão decidida de Jefferson Hope.
- Bom Deus! - sussurrou John Ferrier. - Você me assustou! O que fez você vir até aqui dessa maneira?
- Me dê comida - pediu o outro com a voz rouca. - Não tive tempo para comer ou beber nada nas últimas quarenta e oito horas.
Lançou-se sobre a carne fria e o pão que ainda estavam sobre a mesa de jantar de Ferrier, devorando-os vorazmente.
- E Lucy está enfrentando isso bem? - perguntou após ter satisfeito sua fome.
- Sim. Não conhece a dimensão do perigo - respondeu.
- Ainda bem. A casa está cercada por todos os lados. Por isso rastejei até aqui. Eles podem ser muito espertos, mas não o suficiente para agarrar um caçador Washoe.
Fe rerrier se sentia um novo homem, agora que contava com um aliado tão dedicado. Segurou a mão calosa do jovem e a apertou afetuosamente.
- Tenho orgulho de ser seu amigo - disse. - Muito poucos viriam aqui partilhar o perigo e as dificuldades que enfrentamos.
- Está certo - respondeu o jovem caçador. - Sinto muito respeito pelo senhor, mas, se estivesse sozinho nesta história, eu pensaria duas vezes antes de pôr minha cabeça no vespeiro. É Lucy que me traz aqui, e, antes que qualquer coisa aconteça a ela, creio que haveria em Utah uma pessoa a menos na família Hope.
- O que vamos fazer?
- Amanhã é o último dia, e estará perdido, a menos que aja hoje à noite. Tenho uma mula e dois cavalos esperando no Canyon da Águia. Quanto tem em dinheiro?
- Dois mil dólares em ouro e cinco mil em notas.
- É o bastante. Tenho mais ou menos isso também. Temos que ir para Carson pelas montanhas. É melhor acordar Lucy. Ainda bem que os criados não dormem na casa.
Enquanto Ferrier se ausentava para preparar a filha para a viagem a ser feita imediatamente, Jefferson Hope fez um pacote com todos os comestíveis que encontrou, e encheu um garrafão com água. Sabia por experiência que eram poucas as fontes nas montanhas e distantes entre si. Mal terminou seus preparativos, o fazendeiro voltou com a filha vestida e pronta para partir. O encontro dos namorados foi caloroso, mas rápido, porque os minutos eram preciosos e havia muito a ser feito.
- Temos que partir já - disse Jefferson Hope, falando em voz baixa mas decidida, como quem conhece a enormidade do perigo, mas está preparado para enfrentá-lo. - As entradas da frente e dos fundos estão guardadas, mas, com cuidado, podemos sair pela janela lateral e cruzar os campos. Uma vez na estrada, estaremos a apenas três quilômetros da ravina, onde estão as montarias. Quando alvorecer, estaremos em plenas montanhas.
- E se formos detidos? - perguntou Ferrier.
Hope bateu na coronha do revólver que se avolumava à frente de sua túnica.
- Se eles forem muitos para nós, levaremos dois ou três conosco - falou com um sorriso sinistro.
Foram apagadas todas as luzes da casa e, pela janela escura, Ferrier olhou os campos que tinham sido seus e que, agora, iria abandonar para sempre. Há muito preparava-se para tal sacrifício. A honra e a felicidade de sua filha superavam qualquer pesar pela fortuna arruinada. Tudo parecia tão calmo e feliz - árvores sussurrantes e uma ampla e silenciosa extensão de trigo - que era difícil pensar que ali se ocultava uma ameaça de morte. No entanto o rosto pálido e rígido do jovem caçador revelava que, enquanto se aproximava da casa, havia visto o suficiente para saber o que o esperava.
Ferrier levava a bolsa com o ouro e as notas, Jefferson Hope carregava a parca provisão e a água, enquanto Lucy trazia um pequeno embrulho com alguns de seus pertences mais valiosos. Abriram a janela muito lenta e cuidadosamente e esperaram até que uma nuvem densa escurecesse um pouco mais a noite.
Então, um por um atravessaram o pequeno jardim.
Com a respiração contida e agachados, esgueiraram-se até abrigar-se na sebe, e foram contornando-a até atingir uma abertura que dava para os campos de trigo.
Tinham acabado de atingir esse ponto quando o jovem segurou seus dois companheiros, puxando-os para a sombra, onde permaneceram calados e trêmulos.
Era uma sorte que a vida na pradaria houvesse dado a Jefferson Hope ouvidos de lince. Mal tinham se abaixado, ouviram o pio melancólico do mocho soando a alguns metros deles. De imediato, foi respondido por outro pio a pouca distância dali. No mesmo momento, um vulto vago e escuro emergia da abertura pela qual tinham passado, repetindo o pio lastimoso.
Um segundo homem apareceu na escuridão.
- Amanhã à meia-noite - disse o primeiro, parecendo ser o chefe. - Quando o mocho piar três vezes.
- Está bem - replicou o outro. - Devo informar o Irmão Drebber?
- Sim, e que ele informe aos outros. Nove por sete!
- Sete por cinco! - respondeu o outro, e as duas figuras desapareceram em direções opostas. As últimas palavras, sem dúvida, eram uma espécie de senha e contra-senha. Quando o som dos passos dos dois homens desapareceu na distância, Jefferson Hope pôs-se em pé e, ajudando seus companheiros a passar pela abertura, liderou o percurso através da plantação, na maior velocidade possível, amparando e quase carregando a moça, nos momentos em que suas forças pareciam faltar.
- Depressa! Depressa! - sussurrava ele, vez por outra. - Estamos atravessando a linha dos sentinelas. Tudo depende de nossa rapidez. Depressa!
Uma vez na estrada, foi tudo mais rápido. Só encontraram alguém uma vez e, então, esgueiraram-se para uma plantação, evitando, assim, serem reconhecidos.
Antes de alcançarem a cidade, o caçador desviou para uma trilha acidentada e estreita que conduzia às montanhas. Dois picos escuros e denteados surgiram da escuridão. O desfiladeiro entre os cumes era o Canyon da Águia, onde estavam os cavalos.
Com instinto certeiro, Jefferson Hope pegou seu caminho entre os penhascos gigantescos, seguindo ao longo de um rio seco até alcançar um recanto isolado escondido entre as rochas. Lá os fiéis cavalos haviam ficado amarrados. A moça foi colocada sobre a mula, o velho Ferrier e sua sacola de dinheiro sobre um dos cavalos, enquanto Jefferson Hope puxava o terceiro animal pela trilha escarpada e perigosa.
O caminho desnorteava qualquer um que não estivesse acostumado a enfrentar a natureza em seus aspectos mais selvagens. De um lado, elevava-se um rochedo com uns trezentos metros de altura, negro, rígido e ameaçador, com longas colunas basálticas sobre sua superfície áspera como se fossem costelas de um monstro petrificado. Do outro, uma confusão selvagem de rochas e fragmentos de pedras impossibilitava qualquer avanço. Havia entre os dois lados uma trilha irregular, tão estreita em alguns lugares que tinham que caminhar em fila indiana, e tão acidentada que apenas cavaleiros experimentados poderiam atravessá-la toda. Mesmo assim, apesar de todos os perigos e dificuldades, o coração dos fugitivos estava aliviado, pois cada passo aumentava a distância entre eles e o terrível despotismo do qual tentavam escapar.