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Virou seus olhos escuros e febris para mim ao fazer a pergunta.

- Sim, sou - respondi.

- Então, ponha a mão aqui - disse com um sorriso, movendo suas mãos algemadas em direção ao peito.

Assim fiz e percebi de imediato a comoção interna. As paredes do peito pareciam vibrar e tremer como uma frágil edificação em cujo interior funcionasse um poderoso maquinismo. No silêncio da sala, eu podia ouvir um som seco e um zumbido que provinham da mesma fonte.

- Ora! - exclamei. - Você tem um aneurisma da aorta!

- É como o chamam - respondeu, placidamente. - Fui a um médico na semana passada e ele me disse que isso vai estourar dentro de alguns dias. Tem piorado nos últimos anos. Fiquei assim naquela época em que vivia exposto ao tempo e mal alimentado nas montanhas de Salt Lake. Mas eu já fiz meu trabalho e não me importo de morrer agora. Gostaria, no entanto, de deixar relatado tudo o que aconteceu: Não quero ser lembrado como um assassino comum.

O inspetor e os dois detetives tiveram uma rápida discussão sobre a conveniência de permitir a ele que contasse sua história.

- O senhor acha, doutor, que há um risco de vida imediato? - perguntou o inspetor.

- Tudo indica que sim - respondi.

- Nesse caso, certamente é nosso dever, no interesse da justiça, tomar seu depoimento - declarou o inspetor. - É livre para apresentar seu relato, senhor, mas volto a adverti-lo de que suas palavras serão consideradas.

- Com sua licença, vou me sentar - disse o prisioneiro, passando da palavra à ação. - Esse aneurisma me deixa cansado com facilidade e a briga que tivemos meia hora atrás não melhora em nada a situação. Estou à beira da sepultura e não iria mentir para vocês. Tudo que eu disser será a mais absoluta verdade e não me interessa o uso que os senhores farão do que irão ouvir.

Com essas palavras, Jefferson Hope reclinou-se na cadeira e iniciou sua extraordinária narrativa. Falava de modo calmo e metódico, como se os episódios que narrava fossem comuns. Posso atestar a precisão do que foi dito, porque tive acesso ao caderno de Lestrade, no qual as palavras do prisioneiro foram registradas tal qual foram proferidas.

- Não lhes interessa saber a razão pela qual eu odiava esses homens - disse ele. - Basta saber que eram culpados da morte de dois seres humanos, pai e filha, e que, por isso, já tinham perdido o direito à própria vida. Depois de todo o tempo transcorrido após o crime, era impossível para mim apresentar queixa contra eles em qualquer tribunal. No entanto eu sabia que eram culpados e decidi ser o juiz, os jurados e o executor deles ao mesmo tempo. Os senhores teriam feito o mesmo, se, sendo dotados de sentimento humano, estivessem em meu lugar.

“A moça de quem falei ia casar-se comigo, há vinte anos, mas foi obrigada a tornar-se esposa de Drebber, o que a aniquilou. Retirei a aliança de seu dedo de morta jurando que os últimos pensamentos de Drebber seriam sobre o crime pelo qual morreria castigado.

Levei a aliança sempre comigo, e segui a ele e a seu cúmplice, pelos dois continentes, até agarrá-los. Pensavam que me deixariam cansado. Não conseguiram. Se eu morrer amanhã, o que é provável, morro sabendo que cumpri meu dever neste mundo e que o cumpri bem.

Os dois estão mortos e por minhas mãos. Não tenho mais nada a esperar ou a desejar.

“Eles eram ricos e eu, um homem pobre; não era, portanto, fácil para mim segui-los. Quando cheguei a Londres, já estava com os bolsos vazios, e percebi que precisava fazer alguma coisa para sobreviver. Conduzir e montar cavalos sempre foi tão natural para mim quanto caminhar, de modo que me apresentei ao proprietário de uma empresa de carros e consegui logo o emprego. Tinha que entregar uma determinada quantia semanal ao dono do negócio e o que a ultrapassasse ficaria comigo. Raramente rendia alguma coisa, mas eu conseguia sobreviver de alguma forma. O difícil foi aprender a circular, porque, confesso, dentre todos os labirintos que foram inventados, esta cidade é a mais confusa. Tinha a meu lado um mapa de Londres e, quando localizei os principais hotéis e estações da cidade, eu me saí muito bem.

“Levou algum tempo até que eu descobrisse onde viviam os dois cavalheiros. Investiguei aqui e ali e, finalmente, dei com eles. Estavam em uma pensão em Camberwell, no outro lado do rio. Assim que os descobri, soube que estavam em minhas mãos. Tinha deixado crescer a barba, e não havia possibilidade de que me reconhecessem. Iria rasteá-los e persegui-los até chegar a hora certa. Não os deixaria escapar uma outra vez.

“Estiveram perto de fazê-lo, mas eu os seguia por onde quer que andassem. Às vezes ia atrás deles em meu carro; outras, a pé. Mas da primeira forma era melhor, porque não podiam ficar distantes de mim. Somente bem cedo pela manhã ou bem tarde à noite é que eu conseguia ganhar algum dinheiro e, sendo assim, comecei a dever a meu patrão. No entanto isso não me preocupava, tudo o que queria era pôr as mãos nos dois.

 “Eles eram, porém, muito espertos. nunca iam imaginar que pudessem estar sendo seguidos, porque nunca saíam a sós, nem mesmo depois de escurecer. Andei atrás deles por duas semanas, sem perder um só dia, e nunca os vi separados. Drebber estava bêbado a metade do tempo, mas Stangerson permanecia vigilante.

Observava-os de manhã à noite, sem ter a menor oportunidade. Mas não desanimava, alguma coisa me dizia que se aproximava o momento. Meu único temor era que esta coisa em meu peito explodisse antes da hora, deixando meu trabalho incompleto.

“Por fim, uma noite em que eu estava subindo e descendo a Torquay Terrace, que é como se chama a rua onde estavam hospedados, vi um carro parar em frente à porta da pensão. Uma bagagem foi trazida para fora e, pouco depois, saíram Drebber e Stangerson e tomaram um carro. Chicoteei meu cavalo, sem perdê-los de vista, aborrecido com a possibilidade de que fossem trocar de acomodações. Saltaram na estação Euston. Deixei um menino tomando conta de meu cavalo e segui-os até a plataforma. Ouvi perguntarem pelo trem de Liverpool; o guarda respondeu que tinha acabado de partir e que só haveria outro dentro de algumas horas. Stangerson pareceu irritado com isso, mas Drebber, ao contrário, demonstrava satisfação. Cheguei tão perto deles, em meio à agitação toda, que pude ouvir cada palavra que disseram. brebber disse que tinha um pequeno assunto pessoal a resolver e que, se o outro o esperasse, logo se reuniria a ele. Seu companheiro protestou, lembrando que haviam combinado permanecer juntos. Drebber respondeu que se tratava de um assunto delicado e que precisava ir só. Não entendi o que Stangerson respondeu, mas o outro explodiu em pragas, lembrando-lhe que era um assalariado a seu serviço e que não podia pretender dar-lhe ordens. O secretário perceneu que era melhor recuar, e limitou-se a combinar que, caso perdesse o último trem, iria encontrá-lo no Hotel Halliday. Drebber, então, respondeu que estaria na estação antes das onze e afastou-se.

“O momento pelo qual eu esperava há tanto tempo finalmente havia chegado. Juntos podiam proteger-se um ao outro, mas, separados, ficavam a minha mercê. No entanto não agi com precipitação. Meus planos já estavam feitos. Não há prazer na vingança se aquele que nos ofendeu não tiver tempo para perceber quem o está atacando e por quê. Tinha feito meus planos para que meu inimigo compreendesse que estava pagando por seu antigo pecado. Aconteceu que, dias antes um cavalheiro que fora ver algumas casas em Brixton Road havia esquecido a chave de uma delas em meu carro. Reclamou-a na mesma noite e eu a devolvi, mas, no intervalo, tirei o molde da chave e mandei fazer uma duplicata. Desse modo, pude ter acesso a, pelo menos, um lugar nesta grande cidade onde poderia fazer algo sem ser interrompido. Como atrair Drebber a essa casa era o difícil problema que eu tinha que resolver.

“Descendo a rua, ele entrou num e noutro bar permanecendo quase meia hora no último deles. Quando saiu, caminhou cambaleante, demonstrando que passara da conta. À minha frente ia um cupê e Drebber o fez parar. Segui-o tão de perto que o focinho de meu cavalo não ficou a mais de um metro de seu cocheiro durante todo o percurso. Cruzamos a ponte de Waterloo e percorremos quilômetros de rua até que, para minha surpresa, voltamos à rua da pensão onde ele se hospedara. Não conseguia imaginar por que razão ele voltava para aquela casa, mas fui em frente e estacionei meu carro a uns cem metros dali. Ele entrou na pensão e o cupê foi embora.”