– Você deve acrescentar este caso à sua coleção, meu caro Watson – disse Holmes, à noite. – É um exemplo de eclipse temporário que acomete até mesmo as mentes mais equilibradas. Esses deslizes são comuns para a maioria dos mortais, e grande será aquele capaz de reconhecê-los e saná-los. Quero crer que tenho direito a isso. Passei a noite inteira dando tratos à bola, pensando que uma pista em algum lugar, uma frase solta, uma observação curiosa tivessem chegado ao meu conhecimento e eu as tivesse descartado com facilidade. Então, de repente, com as primeiras luzes da manhã, as palavras surgiram à minha frente. Foi a frase da mulher da casa funerária, contada por Philip Green. Ele a ouviu dizer: “Já devia estar lá a esta altura. Demorou mais por ser fora do comum”. Ela estava falando do caixão. Ele era fora do comum. Só podia significar que ele fora feito com medidas especiais. Mas, por quê? Por quê? Num segundo lembrei-me do tamanho do caixão e da pequena forma no fundo. Por que um caixão tão grande para um corpo tão pequeno? Era para deixar espaço para outro corpo. Os dois corpos seriam enterrados com um só atestado de óbito. Tudo era tão claro, apenas eu não conseguira enxergar. Lady Frances seria enterrada às oito horas. Nossa única chance era impedir que o caixão saísse da casa. Havia uma possibilidade remota de nós a encontrarmos com vida, mas ainda assim era uma possibilidade, como o resultado mostrou. Aqueles vigaristas jamais cometeram um assassinato, pelo que sei. Evitariam qualquer violência até o fim. Poderiam enterrá-la sem nenhum sinal do modo como morrera, e mesmo que fosse exumada, eles ainda teriam uma chance. Minha esperança era que eles tivessem agido dessa forma. Você pode reconstituir a cena muito bem. Você viu o cubículo horrível onde ela ficou presa tanto tempo. Eles entraram e a dominaram com o clorofórmio, trouxeram-na para baixo, puseram mais clorofórmio no caixão para impedir que ela despertasse e aparafusaram a tampa. Engenhoso, Watson. Isto é novo para mim nos anais do crime. Se nosso ex-missionário e a mulher escaparem das garras de Lestrade, tenho certeza de que ainda vou ouvir falar de outros casos brilhantes na carreira futura deles.
o caso do pé do diabo
À curiosas e recordações interessantes ligadas à minha longa e íntima amizade com Sherlock Holmes, enfrento dificuldades por causa de sua aversão à publicidade. Seu espírito cínico sempre foi avesso a qualquer aplauso popular, e nada o divertia mais, ao fim de um caso em que tivesse obtido sucesso, do que transferir o mérito a um policial ortodoxo e ouvir, com um sorriso sarcástico, o coro de parabéns para a pessoa errada. Foi, na verdade, por causa desta atitude de meu amigo, e, evidentemente, não por falta de material interessante, que nos últimos anos eu apresentei ao público uma parte pequena dos meus registros. Minha participação em algumas de suas aventuras sempre foi um privilégio que me impunha discrição e silêncio. Foi, portanto, com grande surpresa que recebi um telegrama de Holmes na última terça-feira – ele nunca escreve uma carta quando basta um telegrama – nos seguintes termos:
Por que não publicar o caso de Cornish - um dos mais estranhos que já enfrentei?
Não sei que fato fez com que ele se lembrasse do caso, ou que capricho motivou seu desejo de que eu o contasse; mas, antes que chegasse outro telegrama cancelando o primeiro, eu me apressei em coligir as anotações que relatavam o caso com detalhes precisos para apresentá-lo aos meus leitores.
Foi, então, na primavera de 1897 que a saúde férrea de Holmes começou a mostrar alguns sinais de estafa por causa do trabalho constante e duro, agravada, talvez, por sua própria imprudência. Em março daquele ano, o dr. Moore Agar, de Harley Street (cuja dramática apresentação a Holmes talvez eu conte um dia), deu ordens expressas para que o famoso detetive particular deixasse de lado todos os seus casos e se entregasse a um descanso absoluto, se quisesse evitar um colapso total.
O estado de sua saúde era um assunto pelo qual o próprio Holmes não tinha o mínimo interesse, já que seu desprendimento mental era absoluto, mas, finalmente, foi convencido, diante da ameaça de ficar permanentemente inutilizado para o trabalho, a fazer uma mudança completa de cenário e de ares. Foi assim que, no início da primavera daquele ano, partimos juntos para um pequeno chalé, perto de Poldhu Bay, no ponto extremo da península de Cornish.
Era um ambiente diferente e especialmente adequado ao estado de espírito sombrio do meu paciente. Das janelas de nossa pequena casa caiada no alto de um morro coberto de relva, víamos todo o sinistro semicírculo Mounts Bay, antiga armadilha para veleiros com sua borda de precipícios negros e recifes perigosos, nos quais incontáveis homens do mar haviam morrido. A baía parecia plácida e protegida, com uma brisa do norte, um convite a embarcações castigadas por tormentas para que entrassem à procura de descanso e proteção. Então vinha o zumbido do vento, lufadas do sudoeste, arrastando âncoras, a praia surgindo e a última batalha nos rochedos espumantes. Os navegadores mais experientes se mantêm distantes desse lugar infernal.
No lado da terra a paisagem ao nosso redor era tão sombria quanto a do mar. Era uma região de pântanos ondulados, isolada e parda, com uma ou outra torre de igreja para indicar a existência de algum vilarejo naquele fim de mundo. Em todas as direções havia sinais de alguma raça desaparecida, que tivesse se extinguido e deixado como lembrança estranhos monumentos de pedra, lápides irregulares que continham as cinzas carbonizadas dos antepassados e curiosos trabalhos de cerâmica que indicavam um passado pré-histórico. O encanto e mistério do lugar, com seu ar sinistro de civilizações desaparecidas, eram um desafio à imaginação de meu amigo, que passava a maior parte do tempo em caminhadas e meditações solitárias pelos arredores. O linguajar arcaico de Cornish também lhe chamara a atenção, pelo fato de que era originário dos caldeus e em grande parte derivado dos mercadores fenícios de estanho. Recebeu uma coleção de livros de filologia e estava se dedicando ao desenvolvimento de uma tese quando de repente, para tristeza minha e desenfreada alegria dele, vimo-nos, até mesmo ali, mergulhados num problema na nossa porta, que era mais forte, perigoso e infinitamente mais misterioso do que qualquer um dos que nos afastaram de Londres. Nossa vida, simples e pacata, e a saudável rotina foram subitamente interrompidas e fomos jogados no meio de um acontecimento que causou emoção não só em Cornwall mas também em todo o oeste da Inglaterra. Muitos de meus leitores devem ter alguma lembrança do que, na época, foi chamado de “O Terror de Cornish”, embora a imprensa londrina tenha recebido um relato bastante incompleto. Agora, passados 13 anos, vou contar ao público os verdadeiros detalhes deste caso inconcebível.
Eu disse que torres espalhadas indicavam os vilarejos que pontilhavam esta região de Cornwall. O mais próximo era o povoado de Tredannick Wollas, onde os chalés de duas centenas de habitantes se agrupavam em torno de uma igreja antiga e cheia de limo. O vigário do lugar, sr. Roundhay, gostava de arqueologia, e Holmes fizera amizade com ele por causa disso. Homem de meia-idade, afável
e educado, conhecia bem os fatos locais. Uma vez tomamos chá na paróquia, a convite dele, e assim ficamos conhecendo também o sr. Mortimer Tregennis, um cavalheiro independente, que ajudava a aumentar os parcos recursos do clérigo alugando um quarto em sua casa grande e afastada. Sendo solteiro, o vigário ficou contente com isso, embora tivesse pouco em comum com seu inquilino, homem magro, moreno, de óculos, com um andar que dava a impressão de uma deformidade física. Lembro-me de que durante nossa rápida visita o vigário estava loquaz, mas o outro ficou estranhamente reticente, introspectivo, com um ar infeliz, sentado com os olhos baixos, aparentemente mergulhado nos próprios pensamentos.