Os dois famosos alemães estavam encostados na proteção de pedra da alameda do jardim, com a casa comprida e baixa atrás deles, e olhavam a ampla curva da praia embaixo, aos pés do grande rochedo sobre o qual Von Bork, como águia errante, pousara quatro anos antes. Suas cabeças estavam próximas e eles conversavam num tom baixo e confidencial. As pontas acesas de seus charutos pareciam os olhos em
brasa de um espírito maligno perscrutando a escuridão.
Um homem notável, este Von Bork – um homem que dificilmente encontraria rival entre todos os dedicados agentes do kaiser. Foram os seus talentos que, antes de mais nada, o faziam dele a pessoa indicada para a missão inglesa, a mais importante de todas, e depois que a assumira, esses dotes se tornaram cada vez mais evidentes para a meia dúzia de pessoas no mundo que sabiam da verdade.
Uma dessas pessoas era seu companheiro na ocasião, o barão Von Herling, primeiro-secretário da missão diplomática, cujo imenso Mercedes Benz de cem cavalos bloqueava a estradinha, enquanto aguardava para levar seu dono de volta a Londres.
– Pelo que vejo do rumo dos acontecimentos, você estará de volta a Berlim dentro de uma semana – dizia o secretário. Quando chegar lá, meu caro Von Bork, acho que vai se surpreender com a recepção de boas-vindas que o aguarda. Acontece que eu sei o que se pensa nos altos escalões a respeito do seu trabalho neste país.
O secretário era um homem alto, forte, corpulento, com um jeito seguro e lento de falar, o que fora sua principal característica na carreira diplomática.
Von Bork riu.
– Não é muito difícil tapeá-los – comentou. – Não se pode imaginar um povo mais dócil e simples.
– Não tenho muita certeza disso – observou o outro, pensativo. – Eles têm limites estranhos e nós temos de aprender a observá-los. É esta simplicidade superficial deles que vira uma armadilha para os estrangeiros. A primeira impressão é que eles são completamente flexíveis. Então, de repente, esbarramos em algo muito duro e ficamos sabendo que chegamos ao limite e precisamos nos adaptar ao fato. Por exemplo, eles têm as suas convenções insulares que precisam ser respeitadas.
– Quer dizer “boas maneiras” e coisas desse tipo?
Von Bork suspirou, como alguém que tinha sofrido muito.
– Estou querendo dizer preconceito britânico em todas as suas estranhas manifestações. Como exemplo, posso citar um dos meus piores erros – permito-me falar dos meus erros porque você conhece suficientemente o meu trabalho para saber dos meus sucessos. Foi na minha primeira visita. Fui convidado para uma reunião de fim de semana na casa de campo de um membro do Gabinete. A conversa foi espantosamente indiscreta.
Von Bork concordou com a cabeça.
– Eu estava lá – disse secamente.
– Exatamente. Bem, é claro que eu naturalmente enviei a Berlim um resumo das informações. Infelizmente nosso bom chanceler é um tanto desastrado em assuntos dessa natureza e transmitiu uma observação que mostrava que ele estava a par do que fora dito. Isto, é óbvio, tornou-me o suspeito direto. Você não imagina o mal que me fez. Asseguro-lhe que não houve nada de delicado com nossos anfitriões ingleses na época. Amarguei aquilo durante dois anos. E agora você, com sua pose de esportista...
– Não, não, eu não a considero uma pose. Pose é uma coisa artificial. Isto é completamente espontâneo. Sou um esportista nato. Gosto disto.
– Bem, isso torna tudo mais fácil. Você compete com eles em corridas de iate, caça com eles, joga pólo, enfrenta-os em qualquer jogo, sua carruagem ganha o prêmio em Olímpia. Até ouvi dizer que luta boxe com os jovens oficiais. Qual é o resultado? Ninguém o leva a sério. Você é um “bom sujeito, esportista, um camarada bastante decente para um alemão”, é beberrão, boêmio, freqüentador de cabarés, farrista. E durante todo o tempo sua pacata casa de campo é o centro de metade das confusões na Inglaterra, e o cavalheiro esportista é o mais astuto agente do serviço secreto na Europa. Gênio, meu caro Von Bork – gênio!
– Isto é uma lisonja, barão. Mas certamente posso afirmar que meus quatro anos neste país não foram improdutivos. Nunca lhe mostrei meu pequeno arsenal. Quer entrar um pouquinho, por favor?
A porta do escritório dava direto no terraço. Von Bork a empurrou e, indo na frente, ligou o interruptor da luz elétrica. Depois fechou a porta atrás do vulto corpulento que o seguiu e cerrou cuidadosamente a pesada cortina da janela. Só depois de tomar todas essas precauções foi que voltou o rosto aquilino e queimado de sol para o visitante.
– Alguns de meus documentos já seguiram – disse. – Ontem, quando minha mulher e a empregada partiram para Flushing, levaram os menos importantes. Claro que devo exigir a proteção da embaixada para os demais.
– Seu nome já consta da lista para uma das suítes. Não haverá dificuldade com suas malas. Claro, é bem possível que não tenhamos de partir. A Inglaterra pode ter deixado a França entregue ao seu destino. Sabemos que não há nenhuma aliança entre elas.
– E a Bélgica?
– Sim e a Bélgica também.
Von Bork sacudiu a cabeça.
– Não vejo como isso pode acontecer. Há um tratado definido ali. A Inglaterra nunca se recuperará de tamanha humilhação.
– Pelo menos teria paz por algum tempo.
– Mas, e sua honra?
– Ora, meu caro, vivemos numa época utilitária. A honra é uma concepção medieval. Além do mais, a Inglaterra ainda não está pronta. É algo inconcebível, mas nem mesmo nossa taxa especial de guerra de 50 milhões, que se poderia pensar que tornou nosso objetivo tão evidente como se tivéssemos anunciado na primeira página do Times, fez com que este povo saísse de sua modorra. De vez em quando se ouve uma indagação. É minha função encontrar uma resposta. Mas posso assegurar-lhe que quanto ao essencial – o estoque de munições, a preparação para ataques de submarinos, os acertos para fabricação de explosivos de alta potência – nada disso está pronto. Não se pode, portanto, pensar numa intervenção inglesa, principalmente agora que fomentamos essa infernal guerra civil da Irlanda e tudo o mais para mantê-la voltada para si mesma.
– Ela tem de pensar no futuro.
– Ah, isso já é outro assunto. Imagino que, no futuro, teremos nossos planos bem definidos a respeito da Inglaterra e suas informações serão vitais para nós. Será hoje ou amanhã com o sr. John Bull.* Se ele preferir hoje, estamos perfeitamente preparados. Se for amanhã, estaremos mais preparados ainda. Tenho certeza de que eles preferirão lutar com os aliados do que sem eles, mas isso é problema deles. Esta é a semana do destino deles. Mas você estava falando de seus documentos.
Ele sentou-se numa poltrona, com a luz brilhando na cabeça calva, enquanto fumava tranqüilamente o charuto.
A sala grande, forrada de painéis de carvalho e cheia de estantes de livros, tinha uma cortina numa das extremidades. Quando ela foi puxada, revelou um cofre grande de bronze. Von Bork tirou uma chave pequena da corrente do relógio e depois de mexer um pouco na fechadura abriu a porta pesada.
– Veja! – ele disse, afastando-se e fazendo um sinal com a mão.
A luz brilhava intensamente no cofre aberto e o secretário da embaixada olhou com vivo interesse os compartimentos cheios de documentos. Cada compartimento tinha uma etiqueta, e ele viu uma série de títulos como Passagens, Defesas de Portos, Aviões, Irlanda, Egito, Fortificações de Portsmouth, Canal da Mancha, Rosythe e muitos outros. Cada compartimento estava abarrotado de documentos e planos.
– Fantástico, secretário. Deixando o charuto de lado, ele bateu palmas com as mãos gordas.
– Tudo em quatro anos, barão. Nada mau para um cavalheiro beberrão. Entretanto, a jóia de minha coleção ainda está por chegar e já tem o seu trono reservado.