Holmes estava sentado em sua cadeira de sempre e parecia muito pálido e exausto. Além de seus ferimentos, mesmo os seus nervos de aço ficaram abalados pelos acontecimentos da tarde, e ele ouviu com horror o meu relato sobre a transformação do barão.
– O preço do pecado, Watson – o preço do pecado! – ele disse. – Mais cedo ou mais tarde ele terá de ser pago. Deus sabe que havia pecado suficiente – acrescentou pegando um livro marrom que estava na mesa. Este é o livro de que a mulher falou. Se isto não desmanchar o noivado, nada jamais o fará. Mas este livro conseguirá, Watson. Tem de consegui-lo. Nenhuma mulher que se preza poderia suportar isto.
– É seu diário de amor?
– Ou seu diário de luxúria. Chame isto como quiser. Quando a mulher nos falou do livro, percebi que havia ali uma arma tremenda, se pudéssemos botar as mãos nele. Na hora, não disse nada que revelasse meus pensamentos, pois aquela mulher poderia me trair e contar a ele. Mas refleti sobre o assunto. Depois, esse ataque que sofri deu-me a oportunidade de fazer o barão pensar que não precisava tomar nenhuma precaução contra mim. Foi tudo providencial. Eu teria esperado mais um pouco, porém sua viagem aos Estados Unidos me obrigou a agir. Ele nunca deixaria para trás um documento tão comprometedor. Portanto, precisávamos agir imediatamente. Um assalto à noite é impossível. Ele toma precauções. Mas havia uma chance à tarde, se eu pelo menos pudesse ter certeza de que a atenção dele estaria ocupada. Foi aí que você e o seu pires entraram em ação. No entanto, eu precisava ter certeza do lugar onde estava o livro, e sabia que tinha apenas alguns minutos para agir, porque o meu tempo seria limitado pelos seus conhecimentos de porcelana chinesa. Por isso trouxe a moça comigo no último momento. Como eu poderia ter adivinhado o que continha o pacotinho que ela carregava com tanto cuidado debaixo da capa? Pensei que ela estivesse a meu serviço, mas parece que a moça tinha um trabalho próprio a realizar.
– Ele adivinhou que eu fora mandado por você.
– Eu temia isso. Mas você o manteve no jogo o suficiente para que eu pudesse pegar o livro, embora não o suficiente para uma fuga despercebida. Ah, sir James, estou muito satisfeito por ter vindo!
Nosso elegante amigo apareceu, atendendo a uma convocação prévia. Ele ouviu com a maior atenção o relato de Holmes sobre os acontecimentos.
– Vocês fizeram maravilhas – maravilhas! – ele exclamou quando acabou de ouvir a narrativa. – Mas se esses ferimentos são tão terríveis quanto o dr. Watson os descreve, certamente nosso objetivo de impedir o casamento está garantido, sem a necessidade de se fazer uso deste livro horrendo.
Holmes sacudiu a cabeça.
– Mulheres do tipo da de Merville não agem desta forma. Ela o amaria ainda mais como um mártir desfigurado. Não, não. É o seu lado moral, não físico, que precisamos destruir. Este livro a trará de volta à terra, não sei de mais nada que o conseguisse. Está escrito com sua própria caligrafia. Ela não pode ignorá-lo.
Sir James levou o livro e o pires precioso. Como eu já estava atrasado, desci com ele até a rua. Uma carruagem o esperava. Ele saltou para dentro dela, deu uma ordem apressada ao cocheiro que trazia suas cores no chapéu e partiu rapidamente. Ele jogou metade do seu sobretudo para fora da janela, a fim de cobrir o escudo sobre a almofada da porta, mas eu já o avistara, devido à luz que vinha da nossa porta. A surpresa me deixou sem ar. Então voltei e subi as escadas, em direção à sala de Holmes.
– Descobri quem é o nosso cliente – exclamei, entusiasmado com a minha grande novidade. – Holmes, ele é...
– É um amigo leal e um cavalheiro cortês – disse Holmes, erguendo a mão para me impedir de continuar. Que isto, agora e para sempre, fique entre nós.
Não sei como foi usado o livro incriminador. Sir James deve ter conseguido isto. Ou é mais provável que uma tarefa tão delicada tenha sido confiada ao pai da jovem dama. De qualquer modo, o resultado foi aquele que se poderia desejar. Três dias depois apareceu uma nota no The Morning Post dizendo que o casamento do barão Adelbert Gruner com a srta. Violet de Merville não seria realizado. O mesmo jornal trazia os primeiros depoimentos do processo contra a srta. Kitty Winter, acusada de ter jogado ácido sulfúrico. Surgiram tantas circunstâncias atenuantes durante o julgamento, que a sentença, como devem lembrar-se, foi a menor possível para um crime desse tipo. Sherlock Holmes foi ameaçado com uma ação judicial por roubo e arrombamento, mas quando um objetivo é bom e o cliente é suficientemente ilustre, até a rígida lei britânica torna-se humana e elástica. Meu amigo até agora não foi para o banco dos réus.
a aventura do soldado descorado
As idéias de meu amigo Watson, embora limitadas, são extremamente obstinadas. Durante muito tempo ele me atormentou para que eu mesmo escrevesse uma aventura que eu tivesse vivido. Talvez eu tenha provocado essa insistência dele, já que muitas vezes lhe disse que suas narrativas são superficiais e o acusei de querer agradar ao gosto popular em vez de limitar-se rigidamente a fatos e números – “Tente você mesmo, Holmes”! – ele revidou, e sou obrigado a admitir que, de pena na mão, começo realmente a perceber que o assunto deve ser apresentado de modo que possa interessar ao leitor. O caso que vou narrar dificilmente pode falhar neste ponto, pois está entre os acontecimentos mais estranhos de minha coleção, embora, por acaso, Watson não tenha anotações sobre ele em sua agenda. Falando do meu velho amigo e biógrafo, eu aproveito esta oportunidade para frisar que, se carrego um companheiro em minhas várias e modestas investigações,
não é por sentimentalismo ou capricho, mas porque Watson possui algumas características notáveis, às quais, em sua modéstia, ele dá pouca atenção, exagerando, ao mesmo tempo, as minhas próprias realizações. Um aliado que prevê minhas conclusões e o rumo de minhas ações é sempre perigoso, mas um que encara cada progresso como uma surpresa permanente e o futuro é sempre um livro fechado é, realmente, um auxiliar ideal.
Descobri no meu caderno de apontamentos que foi em janeiro de 1903, logo após o fim da Guerra dos Boêres, que recebi a visita do sr. James M. Dodd, um britânico grandalhão, robusto, queimado de sol, de porte ereto. Naquela época, o bom Watson me abandonara por causa de uma esposa – a única atitude egoísta de que posso lembrar-me em nossa associação. Eu estava só.
Tenho o hábito de sentar-me com as costas para a janela e instalar meus visitantes na cadeira oposta, para que a luz caia em cheio sobre eles. Quando começou a entrevista, o sr. Dodd parecia um tanto embaraçado. Não tentei ajudá-lo, pois seu silêncio dava-me mais tempo para observá-lo. Eu achava que era bom dar ao meus clientes a impressão de poder, de modo que transmiti a ele algumas de minhas conclusões.
– Percebo que o senhor é da África do Sul.
– Sim, senhor – ele respondeu um tanto surpreso.
– Corpo da Guarda Imperial, imagino.
– Exatamente.
– Do batalhão de Middlesex, sem dúvida.
– É isto, sr. Holmes, o senhor é um adivinho.
– Quando um cavalheiro de aparência viril entra em meus aposentos com o rosto queimado de um modo que o sol inglês jamais o faria, usando o lenço na manga e não no bolso, não é difícil dizer de onde vem. O senhor usa a barba curta, o que mostra que não é da ativa. Tem o estilo de um cavaleiro. Quanto a Middlesex, seu cartão já me mostrou que o senhor é um corretor de Throgmorton Street. A que outro regimento poderia pertencer?
– O senhor vê tudo.
– Não vejo mais do que o senhor, mas treinei para perceber o que vejo. Entretanto, sr. Dodd, não foi para discutir a ciência da observação que o senhor veio me visitar. O que foi que aconteceu em Tuxbury Old Park?