– “Como é que o senhor veio parar aqui?”, ele perguntou, perplexo. “Espere um pouco! Vejo que está exausto, e que a ferida em seu ombro precisa de cuidados. Sou médico, vou já tratar da sua ferida. Mas, homem de Deus! O senhor está correndo perigo muito maior aqui do que no próprio campo de batalha. O senhor está no Hospital de Lepra e dormiu na cama de um leproso.”
– Preciso dizer-lhe mais, Jimmie? Parece que, em vista de uma batalha que se aproximava, todas aquelas pobres criaturas haviam sido evacuadas no dia anterior. Depois, à medida que os ingleses avançavam, foram trazidos de volta por este homem, o médico superintendente, que me garantiu que, embora acreditando que fosse imune à doença, jamais ousaria fazer o que eu havia feito. Ele me colocou em um quarto separado, tratou-me com bondade e, mais ou menos uma semana depois, fui removido para o hospital geral em Pretória.
– Pois aí está a minha tragédia. Esperei pelo impossível, mas só depois que voltei para casa é que as manchas terríveis que você vê em meu rosto me mostraram que eu não havia escapado. O que é que eu podia fazer? Fiquei nesta casa isolada. Tínhamos dois criados em quem podíamos confiar plenamente. Havia uma casa onde eu podia morar. Sob a promessa de segredo, o sr. Kent, que é cirurgião, estava disposto a ficar comigo. Isto parecia muito simples. A alternativa era terrível – segregação entre estranhos, durante toda a vida, sem ter jamais uma esperança de liberdade. Mas era necessário o segredo absoluto, do contrário, mesmo nesta região tranqüila, poderia haver uma denúncia e eu seria arrastado para o meu destino terrível. Até mesmo você, Jimmie – até mesmo você tinha de ser mantido a distância. Por que meu pai cedeu, não consigo imaginar.
O coronel Emsworth apontou para mim.
– Foi este cavalheiro que me obrigou a fazer isso. – Ele desdobrou o pedaço de papel no qual havia escrito a palavra Lepra. – Já que ele sabia tanto, achei que seria mais seguro informá-lo de tudo.
– É verdade – eu disse. – Quem sabe se de tudo isto não resultará alguma coisa boa? Acho que só o sr. Kent viu o paciente. Posso perguntar-lhe, senhor, se é uma autoridade nesta doença que, segundo meus conhecimentos, pode ser tropical ou subtropical?
– Possuo o conhecimento normal de que todo médico formado – observou com certa aspereza.
– Não duvido que o senhor seja muito competente, mas estou certo de que concordará que, num caso destes, uma segunda opinião é valiosa. O senhor evitou isto, pelo que entendi, por medo de ser pressionado a isolar o paciente.
– Realmente – disse o coronel Emsworth.
– Eu previ esta situação – expliquei – e trouxe um amigo, em cuja discrição pode-se confiar totalmente. Uma vez prestei-lhe um serviço profissional, e ele está disposto a aconselhá-lo mais como amigo do que como especialista. Seu nome é sir James Sauders.
A perspectiva de uma entrevista com lorde Roberts não teria provocado, em um subalterno inexperiente, maior assombro e prazer do que aquele que agora se refletia no rosto do sr. Kent.
– Na verdade, ficarei lisonjeado – ele murmurou.
– Então pedirei a sir James para vir até aqui. Ele está agora lá fora, na carruagem. Enquanto isso, coronel Emsworth, talvez pudéssemos nos reunir em seu escritório, onde eu lhes darei as explicações necessárias.
E é aqui que sinto falta de Watson. Com perguntas astuciosas e exclamações de admiração, ele consegue transformar minha arte insignificante, que não passa de bom senso sistematizado, em algo extraordinário. Quando eu mesmo narro minhas histórias, não conto com esta ajuda. Mas explicarei o desenvolvimento de meu raciocínio, da mesma maneira que o expliquei no escritório do coronel Emsworth à minha pequena platéia, que incluía a mãe de Godfrey.
– Esse processo – eu disse – parte da suposição de que, quando eliminamos tudo o que é impossível, aquilo que permanece, ainda que improvável, deve ser a verdade. Pode ser que permaneçam várias explicações, e neste caso faz-se um teste após o outro, até que um ou outro obtenha uma quantidade convincente de argumentos. Nós agora vamos aplicar este princípio ao caso em questão. Conforme o que me foi narrado no início, havia três explicações possíveis para a reclusão ou encarceramento deste jovem numa dependência externa da mansão de seu pai. Havia a suposição de que ele estivesse num esconderijo por causa de um crime, ou que estivesse louco e eles quisessem evitar o asilo, ou que pudesse ter contraído uma moléstia que exigisse a segregação. Eu não podia imaginar outras explicações mais adequadas. Então essas explicações deviam ser investigadas e comparadas umas com as outras.
– A hipótese de um crime não resistiu à investigação. Naquele distrito, nenhum crime ficou sem solução. Eu estava certo disto. Se fosse algum crime ainda não descoberto, então, evidentemente, seria do interesse da família livrar-se do delinqüente, mandá-lo para fora do país, e não mantê-lo oculto em casa. Eu não via explicação para este tipo de conduta.
– Insanidade seria mais plausível. A presença de uma segunda pessoa na dependência externa da casa fazia pensar na possibilidade de um vigia. O fato de ele ter trancado a porta quando saiu reforçou esta hipótese e deu idéia de confinamento. Por outro lado, este confinamento não devia ser rigoroso, ou o jovem não poderia ter saído para ver seu amigo. O senhor há de se lembrar, sr. Dodd, que eu tateava à procura de detalhes quando lhe perguntei, por exemplo, a respeito da publicação que o sr. Kent estava lendo. Se tivesse sido The Lancet ou The British Medical Journey, isto teria me ajudado. Mas não é ilegal manter um louco numa propriedade privada, contanto que haja uma pessoa qualificada para assisti-lo, e que as autoridades tenham sido devidamente notificadas. Por que, então, todo esse desejo desesperado de segredo? Mais uma vez eu não conseguia fazer com que a teoria combinasse com os fatos.
– Ainda restava a terceira possibilidade, rara e improvável, mas na qual tudo parecia se encaixar. A lepra não é rara na África do Sul. Esse jovem poderia ter contraído lepra devido a alguma circunstância extraordinária. Sua família ficaria numa situação muito desagradável, já que iria querer livrá-lo da segregação. Seria necessário um grande sigilo para impedir que os boatos se espalhassem, e para evitar a subseqüente interferência das autoridades. Um médico dedicado e bem pago para tomar conta do doente poderia ser encontrado facilmente. Não havia motivo para que o doente não pudesse ficar em liberdade depois que escurecesse. A descoloração da pele é uma conseqüência comum da moléstia. O caso era grave – tão grave que decidi agir como se a moléstia já tivesse sido comprovada. Quando, ao chegar aqui, reparei que Ralph, ao transportar as refeições, usava luvas impregnadas de desinfetantes, minhas últimas dúvidas desapareceram. Uma única palavra mostrou ao senhor que o seu segredo havia sido descoberto, e se eu preferi escrever a falar, foi para provar-lhe que poderia confiar em minha discrição.
Eu estava terminando esta rápida análise dos fatos quando a porta se abriu e a figura austera do grande dermatologista entrou na sala. Mas desta vez suas feições de esfinge estavam descontraídas e havia em seus olhos muito calor humano. Aproximou-se do coronel Emsworth e apertou-lhe as mãos.
– Quase sempre o meu papel é transmitir notícias de doenças, e raramente boas – ele disse. – Este momento é dos mais agradáveis. Não é lepra.
– O quê?
– É um caso bem típico de pseudolepra ou ictiose, uma doença que deixa a pele escamosa, desagradável à vista, persistente, mas possivelmente curável, e certamente não-infecciosa. Sim, sr. Holmes, a coincidência é extraordinária. Mas seria uma coincidência? Será que não há forças sutis em ação, sobre as quais sabemos pouco? Temos certeza de que o medo terrível que este rapaz sem dúvida sentiu desde que se expôs ao contágio não poderia ter produzido um efeito físico que simulou aquilo que ele temia? De qualquer modo, dou como garantia minha reputação profissional. Mas a senhora desmaiou! Acho que é melhor o dr. Kent ficar com ela até que se recupere de seu choque de alegria.