– Estão vendo? – disse Athelney Jones, voltando pelas escadas. – Os fatos são melhores que as teorias, no fim das contas. A minha opinião está confirmada. Há um alçapão que se comunica com o telhado, e está meio aberto.
– Fui eu que o abri.
– Oh!... Então tinha reparado nele? – Ele parecia ter ficado surpreso com a descoberta. – Pois bem, quem quer que o tenha percebido, ele prova que o nosso cavalheiro pôde escapulir. Inspetor!
– Pronto! – responderam do corredor.
– Peça ao sr. Sholto para entrar. Sholto, é meu dever informá-lo de que qualquer coisa que disser será usada contra você. Está preso em nome de S. M. a Rainha, como culpado da morte de seu irmão.
– Estão vendo? Eu bem que tinha dito! – exclamou o pobre homem, levantando as mãos e olhando para nós.
– Não se aflija com isso, sr. Sholto – disse Holmes.
– Acho que posso prometer-lhe que o livrarei disso.
– Não prometa demais, sr. Teórico, não vá prometendo demais – interrompeu o detetive. – Pode achar o caso depois mais difícil do que lhe parece agora.
– Sr. Jones, não só livrarei o sr. Sholto, como também darei ao senhor de presente o nome e a descrição de uma das duas pessoas que estiveram neste quarto ontem à noite. O nome, tenho todos os motivos para acreditar que seja o de Jonathan Small. É um homem sem instrução, baixo, ágil, que não tem a perna direita e usa uma perna-de-pau já gasta na parte interna. A bota que usa no pé esquerdo tem sola quadrada com uma tira de ferro em torno do salto; é um homem de meia-idade, muito queimado de sol. Já foi condenado a trabalhos forçados. Estas poucas indicações podem ajudá-lo, juntamente com o fato de que está com a pele ferida na palma da mão. O outro homem...
– Ah! O outro? – perguntou Athelney Jones num tom de escárnio, mas mesmo assim impressionado, como pude ver facilmente, com a precisão do outro.
– O outro é um personagem curioso – disse Sherlock virando-lhe as costas. – Espero apresentarlhe o par dentro de pouco tempo. Watson, quero falar com você.
Levou-me para o patamar da escada.
– Esta ocorrência inesperada afastou-nos do objetivo principal da nossa jornada.
– Estava pensando exatamente nisso. Não é justo que a srta. Morstan fique nesta casa amaldiçoada.
– Não. – Você tem de levá-la para casa. Ela mora com a sra. Cecil Forrester, em Lower Camberwell, que não é muito longe. Fico aqui à sua espera, se quiser voltar. Mas quem sabe está cansado?
– De modo algum. Acho que não poderei descansar enquanto não souber mais sobre este caso fantástico. Tenho assistido a muitas desgraças, mas dou-lhe a minha palavra de que esta sucessão de acontecimentos extraordinários, nesta noite, abaloume profundamente. E já que chegamos a este ponto, quero acompanhá-lo até o fim.
– A sua presença vai ser de grande utilidade – respondeu Holmes. – Trabalharemos de modo independente, e deixemos que esse pateta do Jones fique exultante com qualquer bobagem que consiga elaborar. Depois que você deixar a srta. Morstan, quero que vá a Pinchin Lane, no 3, quase à beira-mar, em Lambeth. A terceira casa do lado direito é de um passarinheiro que se chama Sherman. Chame pelo velho Sherman e, com os meus cumprimentos, digalhe que preciso de Toby imediatamente. E você irá trazer o Toby no carro.
– É um cão, imagino.
– É um mestiço original que tem um faro admirável. Eu prefiro o auxílio de Toby ao de todos os policiais de Londres juntos.
– Então vou trazê-lo. Já é uma hora. Se eu conseguir outro cavalo, estarei aqui antes das três horas.
– E eu – disse Holmes – vou ver o que consigo saber com a sra. Bernstone e com o criado hindu, que o sr. Tadeu disse que dorme no sótão contíguo ao outro. Depois vou estudar os métodos do grande Jones e ouvir os seus sarcasmos pouco delicados. “Wir sind gewohnt dass die Menschen verhöhen was sie nicht verstehen.”{4} Goethe é sempre vigoroso.
Capítulo 7
o episódio do barril
A polícia tinha um cabriolé à disposição, e nele levei a srta. Morstan para casa. Como toda mulher angelical, a srta. Morstan suportou tudo serenamente enquanto sentiu que precisava dar apoio a uma pessoa mais fraca que ela, e por isso encontrei-a tranqüila ao lado da pobre governanta apavorada. Mas no cabriolé não teve mais forças e desmaiou, e depois chorou descontroladamente, por ter passado por experiências tão terríveis durante as aventuras daquela noite.
Depois ela me disse que me achara frio e distante naquele dia. Ela nem imaginou a luta que se travava no meu íntimo e o esforço para me manter afastado. O meu amor e a minha compreensão se dirigiam para ela como quando, antes, tomara no jardim as suas mãos nas minhas. Senti que anos de uma vida cheia de convenções não poderiam me fazer conhecer melhor a sua natureza doce e corajosa do que este único dia de experiências estranhas.
Mas havia dois pensamentos que me impediam de confessar-lhe o meu afeto. Ela estava fraca e desamparada, com os nervos e o espírito abalados. Seria um abuso falar de amor naquele momento.
Pior ainda, ela estava rica. Se Holmes fosse bemsucedido nas suas investigações, ela seria uma das maiores herdeiras da Inglaterra. Seria justo, honesto, que um cirurgião a meio soldo se aproveitasse da intimidade que o acaso lhe proporcionara? Será que ela não iria me ver como a um reles caçador de fortunas? Era intolerável pensar que essa idéia pudesse passar pela sua mente. Este tesouro de Agra interpôs-se como uma barreira intransponível entre nós.
Eram quase duas horas quando chegamos à casa da sra. Cecil Forrester. As criadas já tinham se recolhido, mas a sra. Forrester se interessara tanto pela mensagem que a srta. Morstan recebera que ficou esperando a sua volta. Foi ela mesma quem abriu a porta; era uma mulher de meia-idade, graciosa, e fiquei contente de vê-la passar um braço em volta da cintura da outra com ternura e falar-lhe num tom maternal.
Estava claro que ela não era apenas uma subordinada paga, mas uma amiga respeitada. Fui apresentado e a sra. Forrester pediu-me que entrasse para lhe contar nossa aventura. Mas expliquei-lhe a importância da minha tarefa e prometi visitá-la e relatar as novidades sobre o caso. Ao retornar ao cabriolé, olhei para trás e ainda hoje tenho a impressão de ver o pequeno grupo na escada formado pelas graciosas figuras unidas, a porta entreaberta, por onde se escoava a luz do hall, o barômetro e os prendedores de metal das passadeiras da escada. Era tranqüilizador, em meio ao acontecimento tenebroso em que estávamos envolvidos, ter ao menos um rápido vislumbre de um lar inglês tranqüilo. E quanto mais eu pensava no que acontecera, mais tenebroso e obscuro aquilo me parecia. Enquanto rodava pelas ruas silenciosas, iluminadas a gás, ia recordando a extraordinária sucessão de acontecimentos. Havia um problema original, que, agora, pelo menos, estava claro. A morte do capitão, a remessa das pérolas, o anúncio, a carta... todos estes fatos estavam esclarecidos. Mas eles nos levaram unicamente a um mistério mais profundo e muito mais trágico.
O tesouro indiano, o curioso plano encontrado nos papéis de Morstan, a cena estranha da morte do major Sholto, a descoberta do tesouro imediatamente seguida do assassinato do descobridor, os detalhes singulares do crime, as pegadas, a arma esquisitíssima, as palavras do bilhete correspondendo às que estavam escritas no mapa de Morstan formavam um labirinto que um homem menos talentoso que o meu companheiro de casa se veria atrapalhado para esclarecer.