Pinchin Lane era uma fila de casas miseráveis de dois andares na parte mais baixa de Lambeth. Tive que bater mais de uma vez até que me atendessem.
Mas, finalmente, vi o brilho de uma vela por trás da rótula e um rosto olhou da janela de cima.
– Vá-se embora, seu vagabundo bêbado. Se bater de novo, eu abro os canis e solto 43 cães em cima de você.
– Se quiser soltar um, é o que me basta.
– Vá-se embora – gritou a voz. – Tenho um chicote aqui e vou usá-lo na sua cabeça se não for embora logo.
– Mas eu quero um cachorro – gritei.
– Eu não quero conversa – berrou o sr. Sherman.
– Ouça bem... vou contar até três e então vai sentir o chicote.
– O sr. Sherlock Holmes… – comecei a falar... As palavras mágicas provocaram um efeito imediato. Ele fechou a janela e num minuto a porta se abria.
Sherman era um velho magro, descarnado, de ombros caídos, pescoço musculoso e óculos azuis.
– Um amigo do sr. Sherlock Holmes é sempre bem-vindo. Entre, por favor. Mas não chegue perto desse texugo porque ele morde. Seu malcriado, queria dar uma dentada no cavalheiro?
Falava assim com uma fuinha que enfiara a cabeça de olhos vermelhos pelas grades da gaiola.
– Não ligue, meu senhor, é uma preguiça, não tem garras, ela anda pela casa porque liquida com os insetos. O senhor deve me desculpar por ter sido um pouco grosseiro no início, mas a criançada bate muitas vezes aí na porta para me aborrecer. O que é que o sr. Sherlock Holmes quer?
– Quer um dos seus cães.
– Deve ser o Toby.
– É exatamente esse.
– Toby mora no no 7, aqui à esquerda.
Moveu-se devagar com a sua vela por entre a excêntrica família de animais que reunira em torno dele. À luz vacilante da vela eu notava que havia olhos que nos espreitavam aborrecidos, sonolentos, de todos os lados. Até as vigas acima das nossas cabeças estavam cheias de aves que mudavam preguiçosamente de posição quando as nossas vozes perturbavam seu sono. Toby era um bicho feio, de pêlo comprido, orelhas caídas, mestiço, pardo e branco, com um andar vacilante e desajeitado.
Depois de hesitar um pouco, aceitou um tablete de açúcar que Sherman me dera, selando assim a nossa aliança, e ele foi comigo no carro sem dificuldade. Tinham acabado de soar três horas no relógio do palácio quando cheguei a Pondicherry Lodge. O ex-lutador McMurdo também tinha sido preso para averiguações, e tanto ele como o sr. Sholto foram levados para o posto policial. Dois guardas estavam no portão, mas deixaram-me entrar com o cachorro quando mencionei o nome de Holmes. Ele estava na porta, com as mãos nos bolsos, fumando seu cachimbo.
– Ah, ah! Você o trouxe. Bom bicho. – Athelney Jones saiu. – Tivemos uma grande exibição de energia depois que você saiu. Ele prendeu não só o pobre Tadeu, mas também o porteiro, a governanta e o criado indiano. O lugar está à nossa disposição, mas há um sargento lá em cima. Deixe o cão aí e venha cá.
Amarramos Toby à mesa do vestíbulo e subimos. O quarto estava como o deixamos, e a única diferença era que o cadáver fora coberto com um lençol. Um sargento com um ar enfastiado estava encostado a um canto.
– Empreste-me a sua lente, sargento – disse Sherlock. – Agora prenda este pedaço de cartão no meu pescoço de modo que fique pendurado na minha frente. Obrigado. Agora tenho de tirar as meias e as botas. Você deve levá-las lá para baixo, Watson; eu vou subir por aí um pouco. Molhe o meu lenço em alcatrão. Pronto. Venha agora ao sótão comigo um instante.
Subimos pelo buraco. Holmes dirigiu a luz para as marcas de pés na poeira.
– Quero que repare bem nestas marcas. Não observa nelas nada de estranho?
– Elas foram feitas por uma criança ou uma mulher baixa.
– Além do tamanho. Vê alguma coisa?
– Parecem pegadas como qualquer outra.
– De jeito nenhum! Veja! Aqui está a marca de um pé direito. Vou marcar agora com o meu. Qual é a diferença?
– Os dedos do seu pé estão juntos e a outra marca mostra os dedos separados uns dos outros.
– Exatamente. Lembre-se disto. Agora vá até aquela janela e cheire o parapeito. Eu fico aqui por causa do lenço que tenho na mão.
Fiz como ele pediu e logo senti um cheiro forte de alcatrão.
– Foi aí que ele pôs o pé ao sair. Se você pôde sentir o cheiro, devo pensar que Toby não terá dificuldade. Vá lá embaixo, solte o cão e procure Blondin.
Quando cheguei lá fora, vi Holmes no telhado como um enorme pirilampo andando de gatinhas pela calha. Eu o perdi de vista quando ele passou atrás de um grupo de chaminés, mas reapareceu logo, para tornar a desaparecer no lado oposto.
Quando dei a volta, achei-o sentado num dos beirais, num canto.
– É você, Watson?
– Sou eu.
– Foi aqui. O que é aquilo preto lá embaixo?
– Um barril de água.
– Está coberto?
– Está.
– Não há sinais de que uma escada tenha sido apoiada nele?
– Não.
– Que patife. É um lugar perigoso. Se ele pôde subir, eu posso descer por aqui. O barril parece bastante firme. Lá vai... de qualquer maneira.
Ouviu-se o ruído dos pés de Holmes se arrastando e a lanterna começou a descer com firmeza pela parede. Depois, com a luz na mão, chegou ao barril, e dali pulou para o chão.
– Era fácil segui-lo – disse, enfiando as meias e as botas. – As telhas estavam soltas em todo o trajeto por onde passou, e na pressa ele perdeu isto, que confirma o meu diagnóstico, como vocês, médicos, dizem.
O que ele me mostrava era um saco pequeno de embira colorida e com umas contas de cores vivas presas em volta. Pelo tamanho e formato, parecia uma cigarreira. Dentro havia seis espinhos de madeira escura, pontudos de um lado, redondos do outro, como o que fora usado para ferir Bartolomeu Sholto.
– São coisas infernais – disse Holmes. – Não vá se arranhar com eles. Estou contente por tê-los encontrado. É provável que ele só tivesse estes. Assim, não precisamos ter muito medo de que sejamos mimoseados com algum na nossa pele. Você é capaz de enfrentar uma caminhada difícil de uns dez quilômetros, Watson?
– Mas com toda certeza – respondi.
– A sua perna agüenta?
– Agüenta.
– Aqui está o cachorrinho. O bom e velho Toby. Cheire, Toby, cheire... – Ele encostou o lenço embebido em alcatrão no focinho do cão, que estava com as pernas bambas afastadas, aspirando o lenço como um conhecedor aspiraria o bouquet de uma boa safra de vinho.
Holmes atirou o lenço longe, amarrou uma corda grossa no pescoço do mestiço e levou-o para perto do barril de água. O bicho começou a dar uma série de latidos agudos, trêmulos e, com o nariz perto do chão e a cauda no ar, começou a seguir o rastro numa rapidez que mal conseguíamos acompanhar.
O céu começara a clarear e já era possível enxergar a uma certa distância na luz fria e cinzenta. A casa quadrada e sólida, com as suas escuras janelas vazias e paredes altas e nuas, se elevava, triste e desamparada, atrás de nós. Atravessamos o terreno da casa rodeando fossos e buracos. O espaço todo, com os seus montes de lixo espalhados e os arbustos raquíticos, tinha um aspecto estéril, abandonado, que combinava bem com a tragédia que ali se desenrolara.