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– Então Leonardo entrou cada vez mais na minha vida. O senhor pode ver como era ele. Eu agora conheço a pobreza de espírito que se escondia naquele corpo, mas, comparado ao meu marido, ele parecia o anjo Gabriel. Ele tinha pena de mim e me ajudava, até que a nossa intimidade acabou se transformando em amor – um amor profundo e apaixonado, como eu havia sonhado mas nunca esperara sentir. Meu marido suspeitava, mas acho que ele era tão covarde quanto tirano, e que Leonardo era o único homem que ele temia. Ele vingava-se à sua maneira, torturando-me mais do que nunca. Uma noite, meus gritos trouxeram Leonardo até a porta da nossa carroça. Naquela noite, estávamos à beira de uma tragédia, e logo o meu amante e eu compreendemos que isto não poderia ser evitado. Meu marido não devia mais viver. Combinamos que ele deveria morrer.

– Leonardo tinha um cérebro inteligente e ardiloso. Foi ele quem planejou. Não digo isto para culpá-lo, porque eu estava disposta a acompanhá-lo em cada centímetro do caminho. Mas eu nunca teria imaginação para pensar num plano desses. Fizemos uma clava – Leonardo a fez – e na parte superior, que era de chumbo, ele fixou cinco longos pregos de aço com as pontas para fora, com uma extensão semelhante às da pata do leão. Isto serviria para o golpe mortal em meu marido, mas deixando indícios de que o leão que iríamos soltar é que fizera aquilo.

– A noite estava escura como breu quando meu marido e eu descemos, como era costume nosso, para alimentar o animal. Carregávamos a carne crua num balde de zinco. Leonardo estava esperando na extremidade da grande carroça, por onde teríamos que passar antes de chegar à jaula. Leonardo foi lento demais, e nós passamos por ele antes que ele pudesse atacar meu marido, mas ele nos seguiu na ponta dos pés, e eu ouvi o ruído do golpe da clava despedaçando o crânio de Ronder. Meu coração pulou de alegria quando ouvi o som do impacto. Corri e abri o ferrolho que segurava a porta de jaula do leão.

– E então aconteceu aquela coisa terrível. O senhor deve ter ouvido falar como essas criaturas são rápidas para farejar o sangue humano, e como isto os excita. Algum estranho instinto avisara o animal, no mesmo instante, que um ser humano havia sido morto. Quando afastei a grade, o leão saltou para fora e em um segundo estava em cima de mim. Leonardo poderia ter me salvado. Se tivesse corrido para a frente e atacado o animal com a sua clava, poderia tê-lo acuado. Mas o homem perdeu o sangue-frio. Ouvi seu grito aterrorizado, e depois vi quando ele deu meia-volta e correu. Nesse instante os dentes do leão atacaram o meu rosto. Seu hálito quente e asqueroso já havia me envenenado, e eu mal tinha consciência da dor. Com as palmas das mãos tentei afastar as mandíbulas enfurecidas e manchadas de sangue, e gritei por socorro. Eu percebia que o acampamento estava movimentado, e depois lembro-me confusamente de um grupo de homens, Leonardo, Griggs e outros, puxando-me de sob as patas do animal. Esta cena foi a minha última lembrança durante muitos meses incômodos. Quando voltei a mim e me vi no espelho, amaldiçoei aquele leão – oh, como eu o amaldiçoei –, não porque ele havia destruído minha beleza, mas porque ele não havia destruído a minha vida. Eu só tinha um desejo, sr. Holmes, e tinha dinheiro suficiente para satisfazê-lo. Esse desejo era de me cobrir para que meu pobre rosto não fosse visto por ninguém, e de morar onde ninguém que eu tivesse conhecido antes pudesse me encontrar. Isto era tudo o que eu podia fazer, e é o que tenho feito. Um pobre animal ferido que rastejou até a sua caverna para morrer – este é o fim de Eugenia Ronder.

Depois que a infeliz mulher contou a sua história, ficamos sentados em silêncio durante algum tempo. Depois Holmes estendeu seu braço longo e afagou-lhe a mão com uma demonstração de compaixão como eu raramente vira antes.

– Pobre menina! – ele disse. – Pobre menina! Os caminhos do destino são realmente difíceis de entender. Se não houver alguma compensação no futuro, então o mundo é uma brincadeira cruel. Mas o que aconteceu com esse Leonardo?

– Eu nunca mais o vi nem ouvi nada a respeito dele. Talvez eu estivesse errada por sentir tanta amargura contra ele. Ele poderia logo ter-se enamorado de uma daquelas excêntricas com as quais nós viajávamos pelo país, no lugar daquilo que o leão havia deixado. Mas não é tão fácil acabar com o amor de uma mulher. Ele havia me deixado sob as garras do animal, ele me abandonou quando eu precisava dele, e mesmo assim eu não conseguia convencer-me a levá-lo à forca. Quanto a mim, eu não me preocupava com o que me aconteceria. O que poderia ser mais terrível do que a minha vida atual? Mas coloquei-me entre Leonardo e o seu destino.

– E ele está morto?

– Afogou-se no mês passado, quando tomava banho perto de Margate. Vi a sua morte no jornal.

– E o que ele fez com a clava de cinco garras, que é a parte mais estranha e engenhosa de toda a sua história?

– Não sei, sr. Holmes. Perto do acampamento há uma mina de cal com um lago verde e profundo em sua base. Talvez nas profundezas daquele lago...

– Bem, isto agora não tem importância. O caso está encerrado.

Tínhamos nos levantado para partir, mas alguma coisa na voz da mulher chamou a atenção de Holmes. Ele se virou rapidamente para ela.

– A sua vida não lhe pertence – ele disse. – Fique com as mãos afastadas de si mesma.

– Que utilidade tem a minha vida para alguém?

– Como a senhora pode afirmar isso? O exemplo de um sofrimento paciente é, por si só, a mais preciosa de todas lições que se poderia dar a um mundo impaciente.

A resposta da mulher foi terrível. Ela ergueu o véu e aproximou-se da luz.

– Eu gostaria de saber se o senhor suportaria isto – ela disse.

Foi horrível. Não há palavras que possam descrever o contorno de um rosto quando o próprio rosto já não existe. Dois lindos olhos castanhos cheios de vivacidade que exibiam tristeza em meio àquela espantosa ruína tornavam a visão ainda mais horrível. Holmes ergueu a mão num gesto de piedade e protesto, e juntos saímos do quarto.

Dois dias depois, quando fui visitar meu amigo, ele apontou com certo orgulho para uma pequena garrafa azul sobre a lareira. Peguei a garrafa. Havia um rótulo vermelho em que estava escrito “veneno”. Quando abri a garrafa, senti um agradável cheiro de amêndoa.

– Ácido prússico? – perguntei.

– Exatamente. Veio pelo correio. “Mando-lhe minha tentação. Seguirei o seu conselho.” Era essa a mensagem. Eu acho, Watson, que podemos adivinhar o nome da mulher corajosa que nos enviou isto.

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Sherlock Holmes ficou curvado durante muito tempo sobre um microscópio pequeno. Depois ele endireitou o corpo e olhou para mim com ar triunfante.

– É cola, Watson – ele disse. – Indiscutivelmente, é cola. Olhe para esses pontos dispersos no campo de visão!

Inclinei-me e ajustei o foco para a minha vista.

– Esses cabelos são fios de um casaco de tweed. As concentrações cinzentas irregulares são poeira. Há células epiteliais à esquerda. Aquelas bolhas marrons no centro sem dúvida são de cola.

– Bem – eu disse em tom de brincadeira. – Estou disposto a acreditar na sua palavra. Alguma coisa depende disto?

– É uma prova muito boa – ele respondeu. – No caso de St. Pancras, você deve

se lembrar que foi encontrado um boné ao lado do policial morto. O homem acusado nega que o boné seja seu. Mas ele é um fabricante de molduras para quadros, que lida habitualmente com cola.

– Este é um dos seus casos?

– Não, meu amigo Merivale, da Scotland Yard, pediu-me para investigar o caso. Desde que agarrei aquele falsificador de moedas por causa dos resíduos de zinco e cobre na costura do punho de sua camisa, eles começaram a perceber a importância do microscópio – ele olhou com impaciência para o seu relógio de bolso. – Eu esperava a visita de um cliente novo, mas ele está atrasado. A propósito, Watson, você sabe alguma coisa sobre corridas de cavalos?