– O médico dela atestará que, durante meses, os sintomas da doença já faziam prever um fim como esse.
– Bem, o que o senhor fez?
– O corpo não podia ficar lá. Na primeira noite, Norlett e eu o carregamos para a velha casa do poço, que agora não é mais usada. Mas fomos seguidos pelo seu cachorro de estimação, que ficou latindo na porta, de modo que senti que seria necessário um lugar mais seguro. Livrei-me do spaniel, e carregamos o corpo para a cripta da igreja. Não houve indignidade ou irreverência, sr. Holmes. Não sinto que eu tenha ofendido a morta.
– Sua conduta me parece imperdoável, sir Robert.
O baronete sacudiu a cabeça com impaciência. – É fácil falar – ele disse. – Talvez o senhor, se estivesse em meu lugar, sentisse de maneira diferente. Ninguém pode ver todas as suas esperanças e todos os seus planos se despedaçarem no último momento sem fazer um esforço para salvá-los. Achei que aquele lugar não seria indigno para o descanso, se a puséssemos durante algum tempo em um dos esquifes dos antepassados de seu falecido marido, que descansavam em terreno já consagrado. Abrimos aquele esquife, retiramos os conteúdos e a colocamos conforme o senhor a viu. Quanto às velhas relíquias que tiramos, não podíamos deixá-las no chão da cripta. Norlett e eu as retiramos, e ele desceu à noite e as queimou na fornalha central. Esta é a minha história, sr. Holmes. Embora o senhor tenha me forçado a ponto de eu ter que contar mais do que devia.
Holmes ficou sentado durante algum tempo, refletindo.
– Há uma falha em sua narrativa, sir Robert – ele disse finalmente. – Suas apostas na corrida e, por conseguinte, suas esperanças para o futuro estariam de pé mesmo se os seus credores tomassem o seu patrimônio.
– O cavalo faz parte do patrimônio. Por que haveriam eles de se importar com as minhas apostas? Provavelmente eles não iriam fazê-lo correr. Meu principal credor, infelizmente, é o meu inimigo mais cruel, um patife, Sam Brewer, que uma vez fui obrigado a chicotear no Newmarket Heath. O senhor acredita que ele tentaria me salvar?
– Bem, sir Robert – disse Holmes, levantando-se –, é claro que este assunto deve ser encaminhado à polícia. Era meu dever esclarecer os fatos e agora devo deixá-los. Quanto à moralidade ou decência de sua conduta, não me cabe manifestar uma opinião. É quase meia-noite, Watson, e acho que devemos voltar aos nossos humildes aposentos.
Todos sabem agora que este episódio singular teve um final mais feliz do que o procedimento de sir Robert merecia. Shoscombe Prince venceu realmente o Derby, o seu dono embolsou 18 mil libras em apostas, e os credores esperaram até que a corrida terminasse, quando foram totalmente reembolsados, e ainda sobrou o suficiente para que sir Robert estabelecesse novamente uma boa situação na vida. Tanto a polícia como o juiz encararam os acontecimentos com indulgência, e além de uma censura branda pela demora em registrar o falecimento da senhora, o feliz proprietário saiu incólume deste estranho incidente, numa vida que superou sombras e promessas, para terminar numa velhice honrada.
a aventura do negro aposentado
Naquela manhã, Sherlock Holmes estava predisposto à melancolia e à filosofia. Sua natureza prática e viva era sujeita a reações deste tipo.
– Você o viu? – ele perguntou.
– Você se refere ao velho que acabou de sair?
– Justamente.
– Sim, encontrei-o na porta.
– O que achou dele?
– Uma criatura patética, inútil e alquebrada.
– Exatamente, Watson. Patética e inútil. Mas a vida não é toda ela patética e inútil? A história dele não é um microcosmo do todo? Nós estendemos a mão. Nós agarramos. E, no final, o que é que fica em nossas mãos? Uma sombra. Ou pior do que
uma sombra – a miséria.
– Ele é um dos seus clientes?
– Bem, acho que eu possa chamá-lo assim. Ele foi mandado pela Scotland Yard. Exatamente como os médicos às vezes mandam os seus doentes incuráveis a um curandeiro. Eles argumentam que não podem fazer mais nada e, aconteça o que acontecer, o paciente não poderá ficar pior do que já está.
– Qual é o problema?
Holmes pegou na mesa um cartão um tanto sujo. “Josiah Amberley”. – Ele afirma que era o sócio-minoritário de Brickfall e Amberley, fabricantes de materiais artísticos. Você verá o nome deles impresso em caixas de tinta. Ele ganhou uma boa quantidade de dinheiro, retirou-se dos negócios aos 61 anos, comprou uma casa em Lewisham e parou para descansar após uma vida de incessante trabalho pesado. Poderíamos achar que o futuro dele estava assegurado de forma razoável.
– Sim, realmente.
Holmes olhou de relance para algumas anotações que ele havia rabiscado nas costas de um envelope.
– Aposentou-se em 1896, Watson. No início de 1897, casou-se com uma mulher vinte anos mais nova do que ele – uma mulher bonita também, se é que a fotografia não lhe aumenta a beleza. Uma renda suficiente, uma esposa, e tempo para o lazer – parecia que diante dele havia uma estrada reta. Mas, dois anos depois ele está, como você viu, tão alquebrado e miserável como qualquer criatura que se arraste sob o sol.
– Mas o que foi que aconteceu?
– A velha história, Watson. Um amigo traiçoeiro e uma esposa volúvel. Parece que Amberley tinha um passatempo predileto, o jogo de xadrez. Não muito longe dele, em Lewisham, mora um jovem médico que também é jogador de xadrez. Tomei nota de seu nome – dr. Ray Ernest. Este médico estava freqüentemente na casa, e uma intimidade entre ele e a sra. Amberley era uma conseqüência natural, pois você precisa admitir que o nosso infeliz cliente possui poucos encantos exteriores, independentemente de suas virtudes interiores. Na semana passada, os dois partiram juntos – paradeiro ignorado. Além do mais, a esposa infiel levou, como bagagem pessoal, uma caixa com escrituras do velho, que também continha grande parte das economias de seu marido. Será que poderemos encontrar esta senhora? Poderemos salvar o dinheiro? Um problema banal até agora, mas vital para Josiah Amberley.
– O que é que você fará a respeito disso?
– Bem, a pergunta imediata, meu caro Watson, é: o que você fará? – se você quiser fazer o favor de me representar. Você sabe que estou preocupado com o caso dos dois patriarcas coptas, que hoje deveria chegar a um ponto crítico. Realmente não tenho tempo para ir a Lewisham, mas a prova obtida no local tem um valor especial. O velho estava insistindo muito para que eu fosse, mas expliquei-lhe meu problema. Ele está disposto a encontrar-se com um representante meu.
– Sem dúvida – respondi. – Confesso que não sei como poderei ser útil, mas quero fazer o melhor que puder. – E foi assim que naquela tarde de verão parti para Lewisham, sem imaginar que uma semana depois o caso em que eu estava me envolvendo provocaria a mais inflamada celeuma de toda a Inglaterra.
Já era tarde da noite quando voltei a Baker Street para prestar contas da minha missão. Holmes estava recostado, o corpo magro esticado em sua poltrona, o cachimbo soltando lentas espirais de fumaça, enquanto suas pálpebras caíam sobre os olhos tão preguiçosamente que ele quase podia ter adormecido, se não fosse o fato de que, em toda pausa ou trecho questionável de minha narrativa, elas se erguiam até o meio, e dois olhos cinzentos, tão brilhantes e vivos quanto floretes, trespassavam-me com seu olhar inquisitivo.
– The Haven é o nome da casa do sr. Josiah Amberley – expliquei. – Acho que isto o interessaria, Holmes. É como um aristocrata indigente que mergulhou na companhia de seus subalternos. Você conhece aquele bairro a que me refiro, as monótonas ruas de tijolos, as enfadonhas estradas suburbanas. Bem no meio delas está situada esta velha casa, uma pequena ilha de cultura e de conforto à antiga, cercada por um muro alto, manchado de líquens e cheio de musgo, o tipo de muro...
– Deixe a poesia de lado, Watson – disse Holmes com severidade. – Anotei que era um muro alto de tijolos.