– É possível que tenhamos necessidade de alguma coisa desse tipo se acertarmos a pista. Deixo Jonathan para você, mas se o outro oferecer resistência, terei de matá-lo com um tiro.
Enquanto falava, tirou o revólver e, após carregálo, tornou a colocá-lo no bolso do lado direito.
Durante este tempo vínhamos seguindo o rumo de Toby pelas estradas meio rurais ladeadas de vilas que levavam à metrópole. Mas agora estávamos começando a atravessar muitas ruas onde trabalhadores e operários das docas já estavam em atividade e mulheres desmazeladas abriam as portas e varriam as escadas da entrada.
As tabernas das esquinas dos quarteirões estavam começando a funcionar e homens mal-encarados apareciam esfregando as mangas nas barbas depois da libação matutina. Uns cachorros esquisitos latiram e olharam espantados para nós, mas o nosso inimitável Toby não olhou nem para a esquerda nem para a direita, e foi seguindo com o nariz rente ao chão.
Tínhamos atravessado Streatham, Brixton, Camberwell, e agora estávamos em Kennington Lane, que tínhamos alcançado pelas ruas a leste do Oval. Os homens que perseguíamos pareciam ter feito um caminho em ziguezague; provavelmente para não chamarem atenção. Em nenhum momento seguiram pela rua principal quando havia uma rua paralela secundária que pudesse servir. Ao pé de Kennington Lane viraram à esquerda para Bond Street e Miles Street. No lugar onde esta rua passa a ser Knight’s Place, Toby parou, mas começou a correr para trás e para a frente com uma orelha levantada e outra caída, a própria imagem da indecisão canina. Depois passou a andar em círculo, olhando para nós de vez em quando como se pedisse a nossa compreensão por seu embaraço.
– O que é que o cão tem? – resmungou Holmes.
– Eles certamente não tomaram um cabriolé, nem foram embora num balão.
– Talvez tenham parado aqui durante algum tempo – eu sugeri.
– Ali, está bem, ele já descobriu a pista outra vez – disse o meu companheiro em tom de alívio.
De fato, depois de fungar em volta novamente, ele se decidiu e partiu de repente com uma energia e uma disposição que ainda não tinha mostrado. O cheiro parecia agora ainda mais forte porque ele nem precisava farejar o chão, mas deu um puxão na corda e saiu correndo. Eu podia ver pelo brilho dos olhos de Holmes que ele achava que estávamos nos aproximando do fim da nossa jornada. Passamos por Nine Elms e chegamos ao depósito de madeira de Broderick e Nelson, logo depois da taberna White Eagle.
Foi então que o cachorro, frenético de excitação, voltou-se para o cercado onde os serradores já estavam trabalhando. Toby correu pelo meio das aparas e serragens por uma aléia estreita até uma passagem entre duas pilhas de madeira e finalmente, com um latido triunfante, saltou sobre um barril que ainda estava no carrinho-de-mão em que tinha sido trazido. Com os olhos piscando e a língua pendente, Toby ficou em cima do barril olhando para nós, à espera de um sinal de aprovação.
Os aros do barril e as rodas do carrinho tinham sido untadas com alcatrão e o ar estava impregnado do cheiro. Sherlock e eu olhamos desconsolados um para o outro e explodimos ao mesmo tempo numa gargalhada incontrolável.
Capítulo 8
os auxiliares de baker street
E agora? – perguntei. – Toby perdeu sua fama de infalível!
– Ele agiu de acordo com as instruções que recebeu – disse Holmes, tirando-o de cima do barril e levando-o para fora do depósito. – Se lembrarmos a quantidade de alcatrão transportada em carroças em Londres diariamente, não é de admirar que o nosso rastro tenha sido atravessado por outro. É muito usado agora, principalmente para secar a madeira. O pobre Toby não deve ser censurado.
Temos que voltar ao rastro primitivo, suponho.
– Temos – disse Holmes – e felizmente não é muito longe. Evidentemente, o que confundiu o cachorro na esquina de Knight’s Place foi que havia dois rastros indo em direções opostas. Seguimos o caminho errado. Só nos resta seguir o outro.
Não houve dificuldade. No local em que se enganara, Toby começou a andar num amplo círculo e finalmente partiu numa nova direção.
– Espero que agora ele não nos leve ao lugar de onde veio o barril – observei.
– Já tinha pensado nisso. Mas repare que ele vai pela calçada e o barril só podia ir pelo meio da rua. Agora estamos no caminho certo.
Toby nos levava agora para a beira do rio, passando por Belmont Place e Prince’s Street. No fim da Broad Street ele correu em direção à beira da água, onde havia um pequeno cais de madeira. Toby levou-nos até a extremidade do cais e parou ganindo e olhando para a água escura que corria diante de nós.
– Estamos sem sorte – disse Holmes. – Pegaram um bote aqui.
Havia vários botes e lanchas por ali. Levamos Toby a todos eles, porém, por mais que fungasse, não fez o menor sinal de reconhecimento.
Perto do tosco embarcadouro havia uma casa pequena de tijolos com uma placa de madeira pendurada na segunda janela, na qual estava escrito em grandes letras “Mordecai Smith”, e mais abaixo “Embarcações para alugar, por hora ou por dia”. Uma segunda tabuleta em cima da porta informava que também havia uma lancha a vapor – informação confirmada por uma grande pilha de coque no molhe. Sherlock olhou em torno e seu rosto adquiriu uma expressão sinistra.
– As coisas não vão bem. Estes malandros são muito mais espertos do que eu esperava. Parece que esconderam as suas pistas. Receio que tenha havido algum arranjo prévio por aqui.
Ele estava se aproximando da porta da casa quando ela se abriu e um menino de 6 anos, de cabelos encaracolados, saiu correndo, seguido por uma mulher gorda e corada com uma grande esponja na mão, que gritava:
– Vem cá, Jack. Deixa eu te limpar. Vem cá, filhinho. Se teu pai chega e te vê assim, vamos ter de ouvir sermão.
– Oh, amiguinho – disse Holmes espertamente.
– Que malandro de faces rosadas. O que é que você gostaria de ter, Jack?
O menino pensou um momento e disse:
– Queria um xelim.
– Você não gostaria mais de outra coisa?
– Gostaria mais de dois xelins – respondeu o prodígio, depois de pensar um pouco.
– Então, aqui está. Pegue! Que bela criança, sra. Smith.
– Deus o abençoe, meu senhor, ele é muito travesso, me dá muito trabalho, principalmente quando o meu marido fica fora por alguns dias.
– O sr. Smith não está? – disse Holmes, desapontado... – Lamento, porque queria muito falar com ele.
– Saiu desde ontem de manhã e, para lhe dizer a verdade, estou começando a ficar preocupada. Mas se é por causa de algum bote, talvez eu possa resolver.
– Desejava alugar a lancha a vapor.
– Ora veja, meu senhor, foi justamente na lancha a vapor que ele saiu. É isso o que me deixa intrigada, porque sei que o carvão que levaram não podia dar para ir a Woolwich e voltar. Se ele tivesse ido na barca, eu não ficaria preocupada, porque muitas vezes ele tem ido a trabalho até Gravesend, e se houvesse muito o que fazer, ficaria por lá. Mas para que serve uma lancha a vapor sem carvão?
– Pode ter comprado carvão por aí, em qualquer cais.