Era um homem alto e forte, e na posição ereta em que estava, pude ver que a perna-de-pau começava na coxa direita. Ao som de seus gritos estridentes e furiosos, houve um movimento na massa preta que estava na coberta. Um homenzinho preto levantou-se: o menor homem que eu já vira, com uma cabeça grande e disforme, e um tufo de cabelos desgrenhados. Holmes já tinha puxado o seu revólver e eu peguei o meu ao ver aquela criatura deformada e selvagem.
Ele estava embrulhado num manto escuro, uma espécie de cobertor que o envolvia e só deixava o rosto de fora. Mas este rosto era suficiente para que um homem passasse uma noite em claro.
Nunca tinha visto uma fisionomia tão profundamente marcada pela bestialidade e por traços de crueldade. Os olhos pequenos brilhavam, ardendo numa luz sombria, e os lábios grossos e revirados mostravam os dentes arreganhados, ameaçando-nos com uma fúria meio animal.
– Se ele fizer um movimento, atirem – disse Holmes.
Para chegarmos até eles faltava apenas a distância de um bote. Parece que os estou vendo: o homem branco com as pernas abertas praguejando e o maldito anão, com a sua cara horrenda e rangendo os dentes enormes e amarelos, iluminados pela luz do nosso holofote.
Foi bom que pudéssemos vê-los tão nitidamente. Nesse instante, o anão tirava de sob o manto que o cobria uma peça redonda de madeira e a colocava na boca. As nossas pistolas ressoaram juntas. Ele rodopiou, estirou os braços e caiu na água com um soluço. Ainda vi seu olhar venenoso, ameaçador, entre as ondulações das águas.
Na mesma hora o homem da perna-de-pau atirouse ao leme e moveu-o com força, dirigindo a embarcação para a margem sul enquanto nós passávamos a poucos metros de sua popa. Demos a volta rapidamente e ficamos atrás dela, mas a Aurora já estava perto da margem. Era um lugar deserto, onde a lua iluminava um extenso trecho pantanoso com grandes poças d’água estagnada e camadas de vegetação apodrecida.
A lancha, com um ruído surdo, foi de encontro ao banco de lama com a proa levantada e a popa dentro da água. O fugitivo saltou, mas a perna-de-pau afundou no solo movediço. Ele lutava e se debatia em vão. Não conseguia dar um passo, nem para trás nem para a frente.
Ele gritava numa raiva impotente e batia freneticamente com o outro pé na lama, mas todos os seus esforços e movimentos só o faziam enterrar-se cada vez mais na areia viscosa. Quando a nossa lancha encostou, ele já estava enterrado tão fundo que foi preciso puxá-lo com uma corda amarrada nos seus ombros, como se fosse um tubarão. Os dois Smith, pai e filho, estavam sentados, com expressão taciturna, na sua lancha, mas vieram para o nosso barco, obedientemente, quando chamamos.
Tiramos a Aurora da areia e a rebocamos.
Um sólido cofre de ferro, de artesanato indiano, estava na coberta. Era, sem dúvida, o mesmo que continha o tesouro fatal dos Sholto. Estava sem chave, e era pesadíssimo. Nós o levamos com cuidado para a nossa cabine. Quando subimos lentamente o rio, vasculhamos a água com o holofote em todas as direções, mas não descobrimos sinal do ilhéu.
Olhem aqui disse Holmes, mostrando a escotilha... Se não tivessemos atirado depressa com os revólveres... ali, exatamente atrás do lugar onde ficávamos, estava cravado um daqueles dardos assassinos que nós conheciamos bern. Ele deve ter passado entre nós no momento em que atiramos.
Holmes sorriu e sacudiu os ombros com a sua habitual indiferença, mas eu confesso que flquei aterrado só de pensar na morte horrível que passara tão perto de nós naquela noite.
Capítulo 11
o fabuloso tesouro de agra
Nosso prisioneiro estava sentado na cabine diante da caixa de ferro que lhe dera tanto trabalho e que ele esperara tanto para conseguir. Era um sujeito muito queimado de sol, de olhos atrevidos, com o rosto cor de mogno marcado por uma rede de linhas e rugas, que indicavam uma vida dura ao ar livre.
Havia uma singular proeminência do seu queixo barbudo, indicando um homem que não desiste facilmente dos seus objetivos. Devia ter mais ou menos 50 anos, porque o cabelo preto encaracolado já estava entremeado de fios brancos. A sua fisionomia, quando estava relaxada, não era repulsiva, embora as sobrancelhas grossas e o queixo agressivo lhe dessem, no momento da raiva, uma expressão terrível. Estava sentado agora com as mãos algemadas no colo, a cabeça inclinada sobre o peito, olhando para a caixa que fora a causa de todos os seus crimes. Pareceu-me que na sua atitude contida havia mais tristeza do que raiva. Num momento em que olhou para mim vi nos seus olhos um brilho que parecia de troça.
– Então, Jonathan Small – disse Holmes, acendendo um charuto –, lamento que tenhamos chegado a este ponto.
– Eu também – respondeu com franqueza. – Não creio que possa me livrar desta embrulhada. Juro-lhe, pela Bíblia, que nunca levantei a mão contra Sholto. Foi aquele cão do inferno, o Tonga, que lhe atirou um dardo envenenado. Eu não tive nada com isso. Senti tanto como se fosse um parente meu. Eu ainda procurei deter o demônio puxando a corda, mas não dava para desfazer o que já estava feito.
– Pegue um charuto – disse Holmes. – E é melhor tomar um gole, que você está muito molhado. Como você podia esperar que um homem tão pequeno e fraco pudesse dominar o sr. Sholto enquanto você subia pela corda?
– Parece que o senhor viu tudo! A verdade é que eu esperava encontrar o quarto vazio. Conhecia bem os hábitos da casa e era a hora de o sr. Sholto descer para cear. Não tenho necessidade de guardar segredo. Só posso defender-me dizendo a verdade. Se fosse o velho major, eu o teria matado sem piedade. Eu o esfaquearia com a mesma despreocupação com que fumo este charuto. Mas estava escrito que eu tinha de esbarrar neste Sholto filho, com quem nunca tive nenhuma desavença.
– Você está sob as ordens do sr. Athelney Jones, da Scotland Yard. Ele vai levá-lo até a minha casa, onde me contará tudo exatamente como aconteceu. Deve falar com toda a clareza, porque, se o fizer, talvez eu possa ser útil a você. Acho que posso provar que o veneno agiu com tamanha rapidez que, quando você entrou no quarto, o homem já estava morto.
– E foi isso mesmo. Nunca tive na minha vida um choque igual, no momento em que o vi com os dentes arreganhados e a cabeça caída sobre o ombro, quando entrei pela janela. Aquilo me abalou muito. Acho que eu teria matado Tonga se ele não tivesse fugido. Foi por isso que ele deixou lá o bastão e os dardos, o que ajudou a pôr vocês na nossa pista. O que não sei é como conseguiram nos descobrir. Não sinto animosidade em relação aos senhores por causa disso. Mas é bem curioso – disse ele com um sorriso amargo – que eu, que podia reivindicar meio milhão, tenha gasto metade da minha vida construindo um quebra-mar nas Andamãs e provavelmente passarei a outra metade cavando esgotos em Dartmoor. Maldito o dia em que encontrei o negociante Achmet e fiquei sabendo da existência do tesouro de Agra, que só tem trazido maldições aos que o possuem. Trouxe a morte para ele, medo e culpa para o major Sholto e, para mim, escravidão pela vida inteira.
Jones enfiou a cabeça e os ombros na cabine e observou: