– O sr. Tadeu Sholto é um homem rico, esteja certo de que será gratificado, com tesouro ou sem tesouro.
Mas o agente sacudiu a cabeça, desapontado:
– É um mau negócio, e o sr. Jones também vai pensar assim.
A sua previsão estava correta porque o policial empalideceu quando lhe mostrei o cofre vazio em Baker Street. Tinham acabado de chegar, ele, Holmes e o prisioneiro, porque tinham parado no caminho. O meu companheiro estendeu-se na sua poltrona com a sua expressão apática habitual e Small sentou-se em frente e, imperturbável, cruzou a perna-de-pau sobre a outra. Quando mostrei a caixa vazia, recostou-se na cadeira e caiu na gargalhada.
– Isso é coisa sua, Small – disse Jones, irritado.
– É. Eu o escondi num lugar onde nunca poderão ir buscá-lo – disse exultante. – O tesouro é meu, e já que não posso ter a minha parte, ninguém terá coisa alguma dele. Já disse que nenhum ser vivo tem direito a ele, além de três homens que moram nas barracas dos degredados nas Andamã e eu. Sei agora que não posso usá-lo, e eles também não. Fiz tudo para mim mesmo e para eles. Nós agimos sempre juntos sob O sinal dos quatro. Tenho a certeza de que eles teriam feito exatamente o que eu fiz. Joguei o tesouro no Tâmisa para que não fosse parar nas mãos de descendentes ou parentes de Sholto ou de Morstan. Não foi para enriquecê-los que demos cabo de Achmet. Podem achar o tesouro no lugar onde estão a chave e o pequeno Tonga. Quando vi que a sua lancha ia nos alcançar, pus tudo em lugar seguro. Para o trabalhinho de hoje não há rubis.
– Você está nos enganando, Small – disse Jones asperamente. – Se você quisesse jogar o tesouro no rio, teria sido mais fácil jogar com a caixa e tudo.
– Seria mais fácil para mim jogar e mais fácil para vocês o recuperarem – ele respondeu, olhando de soslaio. – O homem que foi suficientemente inteligente para me caçar daquele jeito também o seria para pegar uma caixa de ferro no fundo do rio. Agora que as jóias estão espalhadas por cinco milhas ou mais, será muito mais difícil. Custou-me muito fazer isso, quase enlouqueci quando vi que estavam nos perseguindo. Mas não vale a pena afligir-me. Tive altos e baixos na minha vida, e aprendi que não se deve chorar pelo leite derramado.
– Isto é um assunto muito sério, Small – disse o policial. – Se tivesse colaborado com a justiça em vez de prejudicá-la dessa maneira, teria atenuantes no julgamento.
– Justiça! – rosnou o ex-degredado. – Uma bela justiça! De quem é esta riqueza, se não é nossa? Seria justo que eu desistisse em favor de outros que nunca esperaram por isso? Veja quanto tempo eu esperei. Vinte longos anos naquele pântano cheio de febres, o dia inteiro trabalhando debaixo daqueles mangues, a noite inteira acorrentado nas cabanas imundas dos degredados, picado pelos mosquitos, torturado pela malária, ameaçado o tempo todo pelos malditos policiais negros que gostam de fazer mal aos brancos. Foi assim que eu vivi esperando a posse do meu tesouro, e vem o senhor me falar de justiça, porque acho insuportável a idéia de que paguei este preço para outros o desfrutarem! Preferiria ser atingido por um dos dardos de Tonga do que viver numa cela de condenado, sabendo que outro homem está num palácio desfrutando o dinheiro que deveria ser meu.
Small tinha deixado cair a máscara de estoicismo e tudo isto saiu num turbilhão de palavras enquanto seus olhos queimavam e as algemas batiam com o movimento febril das mãos.
Compreendi, ao ver a fúria e a paixão do homem, que o terror do major, ao saber que o degredado ludibriado estava na sua pista, não fora exagerado nem injustificado.
– Você se esquece de que nós não sabemos nada desta história – disse Holmes tranqüilamente. – Ainda não ouvimos a sua história e não podemos avaliar até que ponto a justiça inicialmente estava do seu lado.
– O senhor me fala sempre com muita gentileza, embora seja ao senhor que eu devo agradecer estes braceletes que estão nos meus pulsos. Mas não guardo ressentimento por isso. É tudo justo e feito abertamente. Se quer ouvir a minha história, eu não pretendo escondê-la. Tudo o que eu disser é a pura verdade, como Deus manda que se diga. E ficarei muito agradecido se puser um copo perto de mim para molhar os beiços quando ficar com sede.
– Eu sou de Worcestershire, nascido perto de Pershore. Acho que ainda vai encontrar um grupo de Smalls morando por lá, se os procurar. Pensei muitas vezes em ir dar uma olhada por lá, mas o certo é que nunca fui muito benquisto na família e duvido que a minha visita lhes desse prazer. São todos gente séria que vai à missa, pequenos agricultores, conhecidos e respeitados na terra, enquanto eu sempre fui um tanto vadio. Mas, quando estava com
18 anos, deixei de lhes dar trabalho porque me meti numa embrulhada com uma moça, de que só pude me livrar alistando-me como soldado e juntando-me ao 3o Buffs que estava indo para a Índia. Mas eu não estava destinado a ser soldado por muito tempo. Eu mal tinha aprendido a segurar o mosquetão quando, imprudentemente, fui nadar no Ganges. Por sorte o sargento John Holder, da minha companhia, estava lá na mesma hora. Ele era um dos melhores nadadores da tropa. Um crocodilo veio na minha direção quando estava bem no meio do rio e arrancou minha perna direita com a mesma eficácia com que o faria um bom cirurgião, bem acima do joelho. Com o susto e o sangue que perdi, desmaiei e teria morrido afogado se Holder não me agarrasse e me levasse para a margem. Fiquei cinco meses no hospital por causa disto, e quando finalmente pude sair com esta pernade-pau presa à minha coxa, estava inválido para o Exército, e incapacitado para exercer qualquer atividade que exigisse movimento.
– Como podem imaginar, eu estava completamente sem sorte nessa época, um aleijado e inútil, embora ainda não tivesse 20 anos! Mas a minha desventura em breve se transformou numa bênção. Um homem chamado Abel White, que tinha ido para lá cultivar anil, queria um feitor para vigiar os carregadores e fazê-los trabalhar. Por acaso ele era amigo do nosso coronel, que tinha se interessado por mim desde o acidente. Para encurtar a história, o coronel me recomendou para a função. Como a maior parte do trabalho tinha de ser feita a cavalo, a minha perna não era obstáculo, porque podia me firmar na sela com a coxa.
– O que eu tinha de fazer era percorrer as plantações, vigiar os homens no trabalho e informar sobre os vadios. O pagamento era muito bom, tinha alojamentos confortáveis e me contentava em passar o resto da minha vida numa plantação de anil. O sr. Abel White era um homem bondoso e às vezes entrava na minha cabana para fumar um cachimbo comigo, porque ali as pessoas brancas se sentem mais próximas umas das outras do que na terra natal.
– Nunca fiquei muito tempo no caminho da sorte. De repente, sem nenhum indício prévio, estourou uma grande revolta. Um dia a Índia vivia aparentemente tranqüila e pacífica como Surrey ou Kent; no dia seguinte estava transformada num perfeito inferno, com 200 mil demônios negros soltos. É claro que os senhores sabem o que aconteceu, e melhor do que eu porque leram, e eu não sei ler. Eu só sei o que vi com os meus próprios olhos. A nossa plantação era num lugar chamado Mutra, perto da divisa das províncias do noroeste. Todas as noites eram iluminadas pelos incêndios nos bangalôs e todos os dias passavam pelas nossas propriedades grupos de europeus com mulheres e filhos para Agra, onde ficavam mais perto das tropas. O sr. Abel White era teimoso. Meteu na cabeça que tinham exagerado a dimensão do caso e que a revolta acabaria tão subitamente como tinha começado, e lá ficava ele sentado na varanda, bebendo uísque e fumando charutos, enquanto o país pegava fogo em volta.