– Claro que ficamos ao lado dele, eu e Dawson, que, auxiliado pela esposa, cuidava da escrituração e da administração.
– Bem, um belo dia a coisa estourou em casa. Eu tinha passado o dia numa plantação distante, e voltava para casa devagar, à tardinha, quando vi de repente uma coisa confusa no fundo de um precipício, onde corria um regato. Fui até lá para ver o que era e senti o coração gelado, quando descobri que era a esposa de Dawson cortada em tiras e meio devorada por chacais e hienas. Um pouco mais adiante estava o próprio Dawson de bruços, morto, com um revólver descarregado na mão, com quatro soldados hindus mortos uns sobre os outros diante dele. Puxei as rédeas do cavalo, perguntando a mim mesmo para que lado eu deveria ir. Mas nesse instante vi nuvens negras de fumaça saindo do bangalô de Abel White, e as chamas que começavam a irromper pelo telhado. Eu sabia que não poderia ajudar o meu patrão e com certeza seria massacrado. Do lugar onde eu estava podia ver centenas de demônios negros com jaquetas vermelhas dançando e rugindo em volta da casa queimada. Alguns me viram e fizeram fogo, e as balas passaram por cima da minha cabeça. Meti-me então pelas plantações de arroz e de madrugada vi-me a salvo dentro dos muros de Agra.
– Mas, como ficou provado, ali também a segurança não era grande. Toda a população estava agitada como uma colméia de abelhas. Em qualquer lugar onde os ingleses podiam se juntar em grupos, eles mantinham apenas o terreno que ocupavam. Em todos os outros lugares, eles eram fugitivos desamparados. Era uma luta de milhões contra centenas; e a parte mais cruel daquilo era que aqueles homens contra os quais lutávamos – peões, cavaleiros e atiradores – eram as nossas próprias tropas que tínhamos ensinado e treinado, que ali estavam manejando as nossas armas, soprando as nossas cornetas. Em Agra estava o 3o regimento dos fuzileiros de Bengala, alguns sikhs, duas tropas a cavalo e uma bateria de artilharia. Um corpo de voluntários de empregados e negociantes tinha sido organizado e eu juntei-me a eles com perna-de-pau e tudo. Saímos ao encontro dos rebeldes em Shahgunge no início de julho e os obrigamos a recuar durante algum tempo, mas a nossa pólvora acabou e tivemos que voltar à cidade.
– Recebíamos as piores notícias de todos os lados, o que não era de espantar, porque, se olharmos para o mapa, veremos que estávamos mesmo no centro da revolta. Lucknow fica a uns 150 quilômetros a leste e Cawnpore, mais ou menos o mesmo ao sul. Por toda parte só havia torturas, afrontas e assassinatos. A cidade de Agra era um lugar grande, formigando de fanáticos e ferozes adoradores de todos os demônios. Os nossos poucos homens perdiam-se naquelas ruas estreitas e sinuosas.
– O nosso comandante atravessou o rio e tomou posição no velho forte de Agra. Não sei se algum dos senhores já leu ou ouviu alguma coisa sobre esse forte. É um lugar muito estranho, o mais estranho que já vi, e olhe que já me meti em cantos muito esquisitos.
– Em primeiro lugar, é enorme. Acho que o terreno murado tem muitos acres e acres. Há uma parte construída recentemente que abrigou a nossa guarnição, além de mulheres, crianças, mantimentos e tudo o mais, e ainda sobrou muito espaço. Mas esta parte não é nada se comparada ao tamanho da antiga, onde ninguém vai e que está abandonada aos escorpiões e bichos de toda espécie. Tem enormes salas desertas, corredores sinuosos, compridos lá dentro, de modo que as pessoas podem se perder facilmente ali. É por isso que raramente alguém entra lá. Mas, de vez em quando, um grupo com tochas ia até lá para exploração.
– O rio banha a frente do forte e assim o protege, mas dos lados e atrás existem muitas entradas que precisavam ser vigiadas, tanto no forte antigo como no novo, onde estavam aquarteladas as nossas tropas. Tinham pouca gente, uma quantidade de homens que mal dava para vigiar os cantos dos prédios e para usar os rifles. Portanto, era impossível manter uma guarda eficiente em cada um dos inúmeros portões. O que fizemos foi organizar uma casa de guarda central no meio do forte e deixar cada portão sob a responsabilidade de um branco e de dois ou três nativos. Eu tinha sido escolhido para fazer sentinela durante certas horas da noite numa porta isolada no lado sudoeste do prédio. Dois sikhs estavam sob o meu comando e eu tinha ordem de atirar à menor suspeita, para que viesse logo um auxílio da guarda central. Mas, como a guarda ficava a uns duzentos passos de distância e ainda havia entre nós um labirinto de passagens e corredores, eu duvidava que chegassem a tempo de fazer alguma coisa em caso de ataque.
– Eu estava muito orgulhoso de ter este pequeno comando, já que eu era um recruta inexperiente e, além do mais, aleijado. Durante duas noites fiquei de sentinela com os meus dois hindus. Eram altos, rapagões de aparência feroz, Mahomet Singh e Abdullah Khan, ambos guerreiros experientes que tinham pegado em armas contra nós em Chilian Wallah. Falavam inglês razoavelmente bem, mas pouca coisa conseguia arrancar deles. Preferiam ficar juntos e bater papo a noite inteira no seu estranho dialeto sikh.
– Eu costumava ficar do lado de fora do portão olhando o rio largo e sinuoso lá embaixo e as luzes trêmulas da grande cidade. O rufar dos tambores, o ruído dos tantãs hindus e os gritos dos rebeldes, bêbados de ópio e fumo, eram suficientes para lembrarnos durante a noite inteira dos perigosos vizinhos do outro lado do rio. De duas em duas horas, o oficial de serviço costumava fazer a ronda dos postos para ver se estava tudo bem.
– A terceira noite de sentinela estava escura e suja, com uma chuva miúda impertinente. Era muito maçante ficar em pé no portão horas e horas num tempo daqueles.
– Tentei várias vezes fazer os sikhs falarem, mas sem muito sucesso. Às duas horas as rondas passaram e quebraram por um momento a monotonia da noite. Vendo que os meus companheiros não queriam conversa, peguei o meu cachimbo e pousei o mosquete para acender um fósforo.
– Num instante fui subjugado pelos dois sikhs. Um deles pegou a minha arma e apontou-a para a minha cabeça enquanto o outro encostou um punhal na minha garganta e jurou entre dentes que o enterraria se eu desse um passo.
– O meu primeiro pensamento foi que eles estavam combinados com os rebeldes e que aquilo era o início de um assalto.
– Se a porta caísse nas mãos dos soldados hindus, o local teria de se render e as mulheres e crianças seriam tratadas como em Cawnpore. Talvez os senhores estejam pensando que quero me justificar, mas doulhes a minha palavra de que quando pensei nisso, mesmo sentindo na garganta a ponta do punhal, abri a boca para gritar e chamar a guarda, ainda que este fosse o último som que me saísse da garganta. O homem que me segurava parece que adivinhou o meu pensamento, porque, mesmo enquanto eu tentava me livrar dele, murmurou:
– “Não faça nenhum barulho. O forte está bastante seguro. Não há cães rebeldes deste lado do rio.” – Suas palavras pareciam sinceras, e eu sabia que se levantasse a voz, eu seria um homem morto. Portanto, esperei em silêncio para saber o que eles queriam de mim.
– “Escute, sahib”, disse o mais alto e feroz, o que se chamava Abdullah Khan, “ou você se torna um dos nossos agora ou tem de ser silenciado para sempre. O negócio é grande demais para que hesitemos. Ou você passa para o nosso lado, de corpo e alma, jurando pela cruz dos cristãos, ou o seu corpo esta noite vai ser jogado no fosso e nós passaremos por cima dele para nos juntarmos aos nossos irmãos do exército rebelde. Não há meio-termo. Escolha: viver ou morrer? Só podemos dar-lhe mais três minutos para decidir, porque o tempo está passando e tudo tem de ser feito antes que a ronda passe de novo.”