- Tinha uma ou duas contas a acertar com o Sr. John Clay - disse Holmes. - Tive algumas despesas com esse assunto, que espero que o banco cubra, mas fora disso considero-me amplamente recompensado por uma experiência que é, de muitas formas, única, e por ter ouvido a extraordinária narrativa da Liga Ruiva.
* * *
- Sabe, Watson, - explicou de manhã cedinho, quando tomávamos um uísque com soda na Baker Street - era perfeitamente óbvio desde o início que o único motivo possível de toda essa história fantástica do anúncio da Liga e a Enciclopédia Britânica era o de afastar esse agiota; algumas horas todos os dias. Foi uma maneira curiosa de alcançar o objetivo, mas é difícil sugerir uma melhor. Sem dúvida alguma a idéia criativa de Clay pela associação com a cor dos cabelos.
As quatro libras por semana eram uma isca para atraí-lo, e o que era isso para eles, que jogavam com milhares? Colocaram o anúncio; um bandido ocupa o escritório temporário, o outro o instiga a se candidatar, e juntos conseguem garantir sua ausência todas as manhãs, a semana inteira. Desde que ouvi dizer que o assistente trabalhava por metade do salário normal, vi que havia uma razão muito forte para querer esse lugar.
- Mas como pôde adivinhar qual era a razão?
- Se houvesse mulheres na casa, teria suspeitado de uma intriga mais vulgar. Mas esse não era o caso. O negócio era pequeno e não havia nada na casa que justificasse preparativos tão elaborados e gastos tão grandes. Então tinha alguma coisa fora da casa. O que poderia ser? Pensei no amor do sujeito pela fotografia e seu hábito de desaparecer no porão. O porão. Aí esta o fim dessa meada embaralhada. Investiguei, então, e descobri que se tratava de um dos mais frios e audazes criminosos de Londres. Estava fazendo alguma coisa no porão que necessitava muitas horas por dia durante meses e meses. Mais uma vez, o que poderia ser? Não pude imaginar nada, a não ser um túnel para outro prédio.
- Estava nesse ponto em minhas deduções quando fomos visitar a cena da ação. Surpreendi você quando bati na calçada com minha bengala. Estava verificando se o porão vinha até a frente da casa. Não vinha. Então toquei a campainha e, como esperava, o assistente atendeu. Tínhamos tido algumas escaramuças, mas nunca nos havíamos visto antes. Mal olhei para seu rosto; queria ver seus joelhos. Você mesmo deve ter observado como estavam gastos, passados e manchados. Revelavam aquelas horas e horas de escavação. Só o que faltava então era saber por que estavam cavando. Dei a volta à esquina, vi que o Banco City and Suburban dava fundos para a casa e senti que resolvera o problema. Quando você foi para casa após o concerto, fiz uma visita à Scotland Yard e ao presidente do banco e o resultado foi o que você viu.
- E como sabia que fariam essa tentativa hoje à noite? - perguntei.
- Bem, quando fecharam os escritórios da Liga era sinal de que a presença do Sr. Jabez Wilson não mais importava. Em outras palavras, haviam terminado o túnel. Mas era essencial que o usassem logo, pois podia ser descoberto, ou o ouro podia ser removido. Sábado era mais conveniente que qualquer outro dia, pois dava dois dias para efetuarem a fuga. Por essas razões, esperava que viessem hoje à noite.
- Deduziu tudo lindamente - exclamei com admiração. - É uma longa cadeia mas cada elo é verdadeiro.
- Salvou-me do enfado - respondeu, bocejando. - Deus, já o sinto se apossando de mim. Toda minha vida é um esforço para escapar do enfado do cotidiano. Esses pequenos problemas ajudam.
- E é um benfeitor da humanidade - retorqui.
Encolheu os ombros. - Bem, talvez, afinal de contas, sirva para alguma coisa - observou.
um caso de identidade
– Meu caro amigo – disse Sherlock Holmes, quando estávamos sentados diante da lareira em seus aposentos na Baker Street –, a vida é infinitamente mais estranha do que qualquer fantasia concebida pelo homem. Não ousaríamos imaginar coisas que são meros lugares-comuns da existência. Se pudéssemos voar por aquela janela de mãos dadas, pairar sobre esta grande cidade, remover delicadamente os telhados e espiar as coisas esquisitas que estão acontecendo, as estranhas coincidências, os planos, os objetivos contrários, as maravilhosas cadeias de acontecimentos agindo através de gerações e levando aos resultados mais absurdos, isso tornaria toda a ficção, com suas convenções e conclusões óbvias, corriqueira e desinteressante.
– Não estou convencido de que isso seja verdade – respondi. – Os casos relatados nos jornais são, em geral, vulgares e desprovidos de imaginação. Nos relatórios da
polícia o realismo chega a um limite extremo, mas o resultado não é, deve-se dizer, nem fascinante nem artístico.
– Uma certa seleção e a discrição devem ser usadas para produzir um efeito realista – observou Holmes. – Isso falta nos relatórios da polícia, que enfatizam mais, talvez, as banalidades dos juízes e não os detalhes que, para um observador, contêm a essência da questão. Pode acreditar, não há nada mais insólito que o corriqueiro.
Sorri e abanei a cabeça. – Compreendo que você pense assim – disse. – Evidentemente, na sua posição de conselheiro extra-oficial e que ajuda todo mundo que está completamente desorientado, em três continentes, você entra em contato com tudo que há de estranho e bizarro. Mas aqui – peguei o jornal que caíra no chão – podemos testar isso na prática. Eis a primeira manchete: “Marido trata mulher com crueldade”. Ocupa meia coluna, mas sei tudo o que vai dizer, mesmo sem ler. Existe, naturalmente, a outra mulher, a bebida, o empurrão, a pancada, o machucado, a irmã ou senhoria que tem pena dela. O escritor mais cru não poderia inventar nada mais nu e cru.
– Na verdade, seu exemplo é infeliz para seu argumento – disse Holmes, tirando o jornal das minhas mãos e dando uma olhada no artigo. – É o caso da separação dos Dundas e, por acaso, investiguei alguns detalhes dele. O marido não bebia, não havia nenhuma outra mulher, e a queixa quanto ao comportamento dele consistia no fato de que adquirira o hábito de terminar todas as refeições tirando a dentadura e atirando-a na esposa, o que, você há de convir, não é coisa que ocorra à imaginação do escritor comum. Tome uma pitada de rapé, doutor, e reconheça que tenho razão a respeito desse seu exemplo.
Estendeu uma caixinha de rapé de ouro velho, com uma enorme ametista no centro. Seu esplendor contrastava tanto com sua maneira simples de viver que não pude deixar de fazer um comentário.
– Ah – disse ele –, esqueci que não o vejo há várias semanas. É uma pequena lembrança do rei da Boêmia pelo meu auxílio do caso dos papéis de Irene Adler.
– E o anel? – perguntei, olhando um maravilhoso brilhante que reluzia em seu dedo.
– Veio da família real da Holanda, mas o assunto em relação ao qual eu os ajudei é tão delicado que não posso confiá-lo nem mesmo a você, que teve a bondade de escrever sobre um ou dois dos meus pequenos problemas.
– E tem algum que esteja estudando no momento? – perguntei, interessado.
– Uns dez ou 12, mas nenhum muito interessante. São importantes, você compreende, sem serem interessantes. Descobri que, em geral, é em assuntos não muito importantes que há campo para a observação e para a rápida análise de causa e efeito que dá tanto encanto a uma investigação. Os crimes maiores tendem a ser mais simples, pois quanto maior o crime, mais óbvio costuma ser o motivo. Nesses casos, exceto em um que me foi encaminhado de Marselha, não há nenhum ponto interessante. Mas é possível que tenha algo melhor dentro de poucos minutos, pois vem um de meus clientes, se não me engano.
Erguera-se e estava olhando por entre as cortinas a rua sombria de Londres. Ao me aproximar, vi que na calçada oposta estava uma mulher corpulenta com um abrigo de peles no pescoço e uma enorme pluma vermelha em um chapéu de abas largas, inclinado sobre uma orelha, à maneira da duquesa de Devonshire. Debaixo dessa imensa proteção, espreitava nossas janelas, nervosa e hesitante, enquanto o corpo oscilava de um lado para o outro e os dedos inquietos mexiam nos botões das luvas. De repente, num arremesso, como o nadador que se atira n’água, atravessou rapidamente a rua e ouvimos o som agudo da campainha.