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Deu-nos a mão e foi embora.

Lá fora o vento uivante e a chuva batiam nas janelas. Aquela história estranha parecia ter vindo até nós por intermédio dos elementos convulcionados e ter sido soprada como um lençol de algas numa tempestade, sendo agora absorvida de novo pêlos mesmos elementos.

Durante algum tempo Sherlock Holmes ficou em silêncio, a cabeça pendendo para a frente e os olhos fixos na cadeira, contemplando os caracóis azuis da fumaça que se seguiam uns aos outros, subindo até o teto.

- Penso, Watson - observou ele, afinal -, que, de todos os nossos casos, nenhum pareceu mais fantástico do que este.

- Exceto, talvez, O signo dos quatro.

- É verdade. Foi excepcional. Contudo, este John Openshaw parece-me caminhar entre grandes perigos, muito maiores do que os dos Sholtos.

- Já sabe em que consistem esses perigos?

- Não há dúvida quanto à sua natureza - respondeu ele.

- Então quais são? Quem é essa K. K. K. e por que persegue esta pobre família?

Sherlock Holmes fechou os olhos, colocou os cotovelos sobre os braços da poltrona e juntou as pontas dos dedos.

- O raciocinador ideal - observou ele -, depois de observar um simples fato em todas as suas facetas, deduz não só o encadeamento dos acontecimentos, como também todos os resultados que se seguirão. Assim como Cuvier podia descrever corretamente o animal todo pela contemplação de um simples osso, assim também o observador que compreendeu perfeitamente um elo numa série de incidentes deve ser capaz de prever acertadamente todos os outros pontos relativos ao caso, tanto antes como depois. Ainda não alcançamos os resultados que só com a razão podem ser atingidos.

Problemas que têm embaraçado quem procurava a sua solução por meio dos sentidos puderam ser resolvidos simplesmente pelo estudo e pela reflexão. Para praticar a arte de discernir até o mais alto grau, é necessário que o raciocinador possa utilizar-se de todos os fatos que lhe vieram ao conhecimento; isto, em si, implica que deve possuir um conhecimento de tudo o que possa ser útil ao seu trabalho, o que, mesmo nestes dias de educação livre e enciclopédica, é raro. Tenho procurado obter esses conhecimentos; todavia, se não me engano, você uma vez, nos primeiros dias da nossa amizade, definiu meus limites de sabedoria de um modo muito preciso.

- Sim - disse eu, rindo -, era um documento singular. Filosofia, astronomia e política estavam marcadas com um zero. Botânica, variável; geologia, conhecimentos profundos quanto às manchas de lama da região num raio de noventa quilômetros da cidade. Química, excêntricos; anatomia, sem um sistema fixo; literatura à sensation e anotações de crimes, sem igual; violinista, pugilista, esgrimista e advogado. Esses, segundo penso, foram os principais resultados da minha análise.

Holmes fez uma careta bem-humorada.

- Bem - disse ele -, agora sei, como disse naquela ocasião, que devemos conservar o cerebrozinho em atividade, cheio de todos os elementos que nos possam ser úteis, e o resto podemos guardar na biblioteca, onde o iremos procurar quando necessário. Agora, por essa mesma razão, e mais a que nos foi apresentada hoje, devemos juntar todos os nossos recursos. Tenha a bondade de tirar da estante a letra K da Enciclopédia americana, aí, perto de você. Obrigado. Agora vamos ver o que deduzimos da situação. Em primeiro lugar podemos presumir que o coronel Openshaw tinha alguma forte razão para deixar a América. Homens da idade dele não trocariam de boa vontade seus hábitos de vida e o clima maravilhoso da Flórida por uma cidadezinha provinciana da Inglaterra. Seu excessivo amor pela solidão, aqui na Inglaterra, sugere a idéia de que estivesse com medo de alguém ou de alguma coisa, e por isso formulamos essa hipótese sobre a razão de haver deixado a América. Quanto ao que ele temia, só o podemos deduzir ponderando o caso das iniciais medonhas recebidas por ele e seus sucessores.

- Reparou nos carimbos daquelas cartas?

- A primeira veio de Pondicherry, a segunda, de Dundee, e a terceira, de Londres.

- São todos portos de mar, e a pessoa que as mandou estava a bordo.

- Excelente, já temos uma indicação. Não pode haver dúvida alguma de que o remetente estava a bordo de algum navio. Vamos agora ver outro ponto. No caso de Pondicherry, passaram-se sete semanas entre a ameaça e o seu cumprimento; no de Dundee, apenas três ou quatro dias. Isso sugere alguma coisa?

- Que havia maior distância a percorrer.

- A carta também tinha maior distância a fazer.

- É verdade! Então não vejo...

- Pode-se presumir pelo menos que o navio em que o homem ou os homens estão é um veleiro. Parece que mandaram seu singular aviso ou sinal antes de encetarem a viagem para dar cumprimento à missão. Lembre-se da rapidez com que o ato se seguiu à ameaça, quando veio de Dundee. Se tivessem vindo de Pondicherry de barco, teriam chegado quase tão depressa quanto a carta, mas passaram-se sete semanas. Parece-me que estas sete semanas representam a diferença entre o tempo que leva o navio que trouxe a carta e o cargueiro que trouxe o remetente.

- É muito possível.

- Mais do que isso, talvez. E agora, veja a urgência deste novo aviso: foi por isso que insisti com o jovem Openshaw para que se acautele. O golpe tem sido dado sempre no fim do tempo necessário para os “remetentes” percorrerem o caminho. Porém, esta veio mesmo de Londres, e não podemos contar com qualquer demora.

- Bondoso Deus! - exclamei eu. - Qual será a razão desta interminável perseguição?

- Os papéis que Openshaw guardava eram sem dúvida de importância vital para a pessoa ou as pessoas do cargueiro. Parece evidente que há mais de uma pessoa. Um homem só não podia ter praticado duas mortes de modo a enganar um júri. Devem existir vários homens no caso, e devem ser pessoas de recursos e de determinação. Resolveram recuperar os seus papéis. Desse modo, K. K. K. cessam de ser as iniciais de uma pessoa só, tornando-se o distintivo de uma sociedade.

- Mas que sociedade?

- Nunca ouviu falar na Ku Klux Klan? - perguntou Holmes em voz baixa.

- Nunca.

Holmes folheou o livro que tinha sobre os joelhos.

- Aqui está - disse ele.

“O nome Ku Klux Klan deriva da semelhança imaginária com o som produzido ao se carregar uma espingarda. Essa terrível sociedade secreta foi organizada por ex-soldados confederados nos Estados do sul, depois da guerra civil, ramificando-se rapidamente em diversas partes do país, nomeadamente no Tennessee, na Louisiana, na Carolina, na Geórgia e na Flórida. Era usada com fins políticos, principalmente para aterrorizar os eleitores negros com o assassínio ou expulsão do país daqueles que fossem contra os seus métodos. Suas atrocidades eram precedidas geralmente por um aviso ao homem marcado, de um modo fantástico, mas reconhecíveclass="underline" um ramo de folhas de carvalho, em algumas regiões, sementes de melão ou de laranja, noutras. Ao receber isso, a vítima podia abjurar abertamente as antigas idéias ou deixar o país. Se se mantivesse firme e recusasse dar atenção ao aviso, a morte era certa, e usualmente de modo estranho e imprevisto. Tão perfeita era a organização dessa sociedade e tão sistemáticos os seus métodos, que não há lembrança de um caso em que o homem a tivesse desprezado, escapando, ou que os autores de qualquer dos casos de ultraje tivessem sido descobertos. Por muitos anos, a sociedade foi forte, apesar dos esforços do governo dos Estados Unidos e da comunidade sulista para tentar eliminá-la. Finalmente, em 1869, rápida e quase totalmente, a sociedade desapareceu, embora tenham ocorrido casos esporádicos do mesmo tipo desde aquela data.”

- Repare - disse Holmes - que a repentina desaparição da sociedade coincide com a saída de Openshaw da América, levando seus papéis. Não é de admirar que ele e sua família tenham alguns dos mais aferrados adeptos a persegui-los. Você compreende que esse registro e diário podem indicar alguns dos homens mais importantes do sul, e existem muitos que não dormirão sossegadamente até que os papéis sejam recuperados.