Uma noite – foi em junho de 1889 –, minha campainha tocou naquela hora em que o homem dá seu primeiro bocejo e olha para o relógio. Empertiguei-me na
cadeira e minha esposa deixou cair o bordado no colo e fez uma careta de desapontamento.
– Um cliente! – disse. – Você vai ter de sair.
Gemi, pois acabara de voltar depois de um dia estafante.
Ouvimos a porta se abrir, algumas palavras apressadas, e depois passos rápidos no linóleo. A porta da sala onde estávamos foi aberta bruscamente e uma senhora, vestida com uma roupa escura e coberta com um véu, entrou rapidamente.
– Peço desculpas por vir tão tarde – começou, e então, perdendo de repente todo o controle, correu e atirou os braços em volta do pescoço de minha esposa, soluçando em seu ombro. – Oh! Estou tão aflita! – exclamou. – Preciso tanto de ajuda.
– Oh – disse minha esposa, erguendo o véu que cobria seu rosto –, é Kate Whitney. Como você me assustou, Kate! Não tinha a menor idéia de que era você quando entrou.
– Não sabia o que fazer, por isso vim direto aqui.
Era sempre assim. As pessoas em dificuldades vinham correndo para minha esposa como pássaros para um farol.
– Foi muito bom você ter vindo. Agora precisa tomar um pouco de vinho com água, sentar-se aqui confortavelmente e nos contar tudo. Ou prefere que mande James para a cama?
– Oh, não, não. Quero que o doutor me aconselhe e me ajude também. É a respeito de Isa. Há dois dias ele não aparece em casa. Estou com tanto medo!
Não era a primeira vez que falava do problema do marido, a mim, como médico; à minha esposa, como velha amiga e companheira de colégio. Procuramos acalmá-la e confortá-la, buscando palavras apropriadas. Sabia onde estava o marido? Será que conseguiríamos trazê-lo de volta?
Parecia que sim. Tinha uma informação segura de que ultimamente, quando sentia necessidade, ele usava uma casa de ópio no extremo leste da cidade. Até então suas orgias haviam sido limitadas a um dia, e voltava sempre, contorcendo-se em espasmos e totalmente alquebrado, à noite. Mas agora esse episódio estava durando 48 horas e estava, certamente, em meio à escória das docas, aspirando o veneno ou dormindo sob seu efeito. Era ali que seria encontrado, tinha certeza, no Bar de Ouro, em Upper Swandam Lane. Mas o que devia fazer? Como podia ela, uma mulher jovem e tímida, entrar num lugar desses e arrancar o marido dos desordeiros que o cercavam?
Aí estava a questão, e naturalmente só havia uma saída. Será que eu não poderia acompanhá-la até esse lugar? E, pensando bem, por que era preciso que ela fosse até lá? Eu era médico de Whitney e, como tal, tinha certa influência sobre ele. Seria melhor que eu fosse sozinho. Dei-lhe minha palavra de que o mandaria para casa em um carro de aluguel dentro de duas horas se ele estivesse realmente no endereço que me dera. E assim, em dez minutos, deixei minha poltrona confortável e minha sala alegre e me vi em um carro de aluguel, numa missão estranha, como me pareceu na ocasião, embora só o futuro pudesse demonstrar como seria estranha.
Não encontrei nenhuma dificuldade na primeira etapa de minha aventura. Upper Swandam Lane é um beco sórdido, escondido atrás dos armazéns das docas que se alinham ao longo da margem norte do rio, a leste da Ponte de Londres. Entre uma loja de roupas baratas e uma taberna, descendo degraus íngremes que desapareciam num vão negro como a boca de uma caverna, encontrei o antro que procurava. Mandei o carro me esperar, desci os degraus, gastos no meio pelo tráfego contínuo de pés bêbados, e à luz de uma lâmpada a óleo colocada sobre a porta, achei a fechadura e entrei em um quarto de teto baixo, longo e estreito, cheio da fumaça parda e espessa do ópio, e com beliches de madeira junto às paredes, como o castelo de proa de um navio de emigrantes.
Através da penumbra podia-se vislumbrar com dificuldade corpos deitados em poses fantasticamente estranhas, ombros encolhidos, joelhos dobrados, cabeças jogadas para trás e queixos apontando para o teto e, aqui e ali, um olho escuro e embaçado virado para o recém-chegado. Dentro das negras sombras brilhavam pequenos círculos vermelhos, ora vivos, ora fracos, à medida que o veneno ardia ou ia se apagando no bojo dos cachimbos de metal. A maioria estava silenciosa, mas alguns resmungavam para si mesmos e outros falavam entre si em voz baixa e monótona, a conversa vindo em rojões e subitamente terminando em silêncio, cada um balbuciando seus próprios pensamentos e não prestando atenção às palavras do vizinho. Lá no fundo havia um fogareiro com carvão em brasa junto ao qual estava sentado um velho alto e magro em um banquinho de três pés, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos descansando nos joelhos, contemplando o fogo.
Quando entrei, um empregado malaio de tez escura correu para mim com um cachimbo e uma dose da droga, apontando para uma cama vazia.
– Obrigado, não vim para ficar – disse. – Há um amigo meu aqui, o sr. Isa Whitney, e quero falar com ele.
Houve um movimento e uma exclamação à minha direita e, tentando vencer a penumbra, vi Whitney, pálido, abatido e sujo, olhando fixamente para mim.
– Meu Deus! É Watson – disse. – Estava em petição de miséria, com todos os nervos em espasmo. – Diga-me, Watson, que horas são?
– Quase 23 horas.
– De que dia?
– Sexta-feira, 19 de junho.
– Céus! Pensei que fosse quarta-feira. É quarta-feira, eu sei. Por que está me assustando assim? – Escondeu o rosto nos braços e começou a soluçar.
– Estou lhe dizendo que é sexta-feira, homem. Sua mulher está à sua espera há dois dias. Devia estar envergonhado de si mesmo!
– E estou. Mas você está errado, Watson, estou aqui há apenas algumas horas, três cachimbos, quatro... não me lembro quantos. Mas vou para casa com você. Não quero amedrontar Kate... pobre Kate. Dê-me a mão! Você está de carro?
– Sim, tenho um à espera.
– Então vou nele. Mas devo alguma coisa aqui. Veja quanto devo, Watson. Não estou bem. Não posso fazer nada sozinho.
Desci a passagem estreita entre as duas fileiras de sonhadores, prendendo a respiração para não inspirar os vapores nocivos da droga, procurando o gerente. Ao passar pelo homem alto que estava sentado junto ao fogareiro, senti que puxavam minha manga e uma voz baixa murmurou: “Passe por mim e depois olhe para trás”. As palavras soaram bem distintas em meus ouvidos. Olhei para baixo. Só podiam ter vindo do velho ao meu lado, mas ele estava sentado como antes, completamente absorto, muito magro, muito enrugado, curvo pela idade, com um cachimbo de ópio pendurado nos joelhos, como se tivesse caído dos dedos subitamente frouxos. Dei dois passos à frente e virei. Foi preciso todo meu autocontrole para evitar que desse um grito de espanto. Virara de costas de modo que ninguém podia vê-lo, a não ser eu. Sua forma se enchera, as rugas haviam desaparecido, os olhos embaçados haviam recuperado seu brilho e lá, sentado junto ao fogo e rindo da minha surpresa, estava ninguém menos que Sherlock Holmes. Fez um discreto sinal para que me aproximasse e imediatamente, ao virar o rosto para os outros novamente, voltou a ser um velho senil.
– Holmes! – exclamei. – O que está fazendo neste antro?
– Fale o mais baixo possível – respondeu. – Tenho ouvidos excelentes. Se quiser ter a bondade de se livrar de seu amigo dopado, eu ficaria muito contente de ter uma conversa com você.
– Tenho um cabriolé lá fora.
– Então, por favor, mande-o para casa nesse carro. Pode confiar nele, pois parece arrasado demais para se meter em encrencas. Vou também aconselhar que mande pelo cocheiro um bilhete para sua esposa, explicando que está comigo. Espere lá fora, sairei em cinco minutos.