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McIver esticou o braço e desligou o rádio.

— Maldição, o mundo está desmoronando e a BBC vem falar em porcos.

— O que você faria sem a BBC, a televisão e as loterias de futebol? Ventanias e enchentes. — Genny pegou o telefone para ver se dava sorte. Estava mudo como sempre. — Espero que as crianças estejam bem. — Eles tinham um filho e uma filha, Hamish e Sarah, ambos já casados e cada um com um filho. — A pequena Karen se resfria tão facilmente! E Sarah! Mesmo com 23 anos ainda precisa que a gente lembre a ela para se vestir direito! Será que ela nunca vai crescer?

— É uma droga não poder telefonar quando se tem vontade — disse Pettikin.

— É. Bem, está na hora de comer. O mercado estava quase vazio hoje, já pelo terceiro dia consecutivo. Então, era escolher entre carneiro velho assado com arroz, outra vez, ou um especial. Escolhi o especial e usei as duas últimas latas. Temos torta de carne, couve-flor gratinada, bolo de frutas e uma entrada surpresa. — Apanhou uma vela e foi para a cozinha, fechando a porta.

— Por que será que sempre temos couve-flor gratinada? — McIver ficou olhando a luz da vela tremulando na porta da cozinha. — Detesto esse maldito prato! Já disse isso a ela umas cinqüenta vezes... — A noite lá fora, de repente, chamou sua atenção. Foi até a janela. A cidade estava sem luz por causa do corte de energia. Mas em direção ao sudeste, um clarão vermelho iluminava o céu. — Jaleh outra vez — disse simplesmente.

No dia 8 de setembro, há cinco meses, dezenas de milhares de pessoas tomaram as ruas de Teerã para protestar contra a lei marcial imposta pelo xá. Houve muita destruição, principalmente em Jaleh, um subúrbio pobre, densamente povoado, onde acenderam fogueiras e armaram barricadas com pneus em chamas. Quando as forças de segurança chegaram, a multidão enraivecida, que gritava "Morte ao xá", recusou-se a se dispersar. A luta foi violenta. Gás lacrimogêneo não funcionou. Mas as armas funcionaram. As estimativas de mortes variaram das 97 oficiais a 250, segundo algumas testemunhas, até duas ou três mil, segundo grupos militantes de oposição.

No confronto que se seguiu a esta "Sexta-Feira Sangrenta", um grande número de políticos de oposição, dissidentes e adversários foram presos — mais tarde, o governo admitiu que foram 1.106 — inclusive dois aiatolás, o que inflamou ainda mais as multidões.

McIver sentiu muita tristeza ao olhar o clarão. Se não fosse pelos aiatolás, pensou, especialmente Khomeini, nada disso teria acontecido.

Anos atrás, quando McIver veio ao Irã pela primeira vez, ele perguntara a um amigo na embaixada britânica o que queria dizer aiatolá.

— É uma palavra árabe, ayat'Allah, e quer dizer 'reflexo de Deus'.

— Ele é um padre?

— De jeito nenhum, não há padres no Islã, que é o nome da religião deles — esta é outra palavra árabe que significa 'submissão', submissão à Vontade de Deus.

— O quê?

— Bem — dissera seu amigo, com uma gargalhada, — vou explicar, mas você tem que ter um pouco de paciência. Em primeiro lugar, os iranianos não são árabes, mas arianos, e a grande maioria é de muçulmanos xiitas, uma seita fluida com tendências ao misticismo. Já os árabes são, em geral, muçulmanos ortodoxos, e estes constituem a maioria dos bilhões de muçulmanos do mundo. Estas seitas são um pouco como os nossos protestantes e católicos, e vêm se digladiando com a mesma fúria. Mas todos partilham da mesma fé: que há um único Deus, Alá, palavra que em árabe significa Deus; que Maomé, um homem de Meca que viveu de 570 até 632 foi o Seu profeta, e que as palavras do Corão, proclamadas por Maomé e registradas por outros depois da sua morte, vieram diretamente de Deus e contêm todos os preceitos pelos quais deve viver o indivíduo ou a sociedade.

— Todos? Isto não é possível.

— Para os muçulmanos é, Mac, hoje, amanhã, para sempre. Mas 'aiatolá' é um título próprio dos xiitas e dado por consenso e aclamação popular pela congregação de uma mesquita, outra palavra árabe que significa 'lugar de encontro', que é só o que ela é, um lugar de encontro, de forma alguma uma igreja, a um mulá que exiba aquelas características mais procuradas e admiradas entre os xiitas: piedade, pobreza, conhecimento, mas só dos Livros Sagrados, o Corão e o Suna, e liderança, com muita ênfase na liderança. No islamismo não há nenhuma separação entre religião e política, não pode haver nenhuma, e os mulás xiitas do Irã, desde o começo, têm sido guardiães fanáticos do Corão e do Suna, líderes fanáticos e, quando necessário, líderes revolucionários.

— Se um aiatolá ou um mulá não é um padre, o que ele é?

— Mulá significa 'líder', aquele que conduz as preces numa mesquita. Qualquer um pode ser um mulá desde que seja homem e muçulmano. Qualquer um. Não há clero no islamismo, não há ninguém entre você e Deus, esta é uma de suas belezas, mas não para os xiitas. Os xiitas acreditam que, depois do Profeta, a terra deveria ser governada por um líder carismático, semidivino, infalível, o imã, agindo como um intermediário entre o humano e o divino, e foi daí que veio a grande divisão entre ortodoxos e xiitas, e suas guerras foram tão sangrentas quanto a dos Cem Anos. Enquanto os ortodoxos acreditam em consenso, os xiitas aceitariam a autoridade do imã, caso ele existisse.

— Então quem escolhe o homem que vai ser imã?

— Este é que é o problema. Quando Maomé morreu, aliás ele nunca declarou ser nada mais do que um simples mortal, embora o último dos profetas, não deixou nem filhos homens nem um sucessor de sua escolha, um califa. Os xiitas acharam que a liderança deveria permanecer com a família do Profeta e o califa só poderia ser Ali, seu primo e genro, casado com Fátima, sua filha favorita. Mas os sunitas ortodoxos, seguindo um costume tribal que se usa até hoje, acreditavam que o líder só poderia ser escolhido por consenso. Eles provaram ser mais fortes, e os três primeiros califas foram eleitos pelo voto; dois foram assassinados por outros sunitas, até que finalmente, para os xiitas, Ali tornou-se califa e, como eles ardorosamente acreditam, o primeiro imã.

— Eles o consideravam semidivino?

— Guiado por Deus, Mac. Ali durou cinco anos, depois foi assassinado. Os xiitas dizem que foi martirizado. Seu filho mais velho tornou-se imã, depois foi derrubado por um usurpador sunita. Seu segundo filho, o venerado Hussein, de 25 anos, levantou um exército contra o usurpador, mas foi trucidado, martirizado com todo o seu povo, inclusive os dois filhos mais jovens de seu irmão, o seu próprio filho de cinco anos, e um bebê de colo. Isto aconteceu no décimo dia do mês de muharram, no ano 650 da nossa era e 61 na deles, e eles ainda celebram o martírio de Hussein como o seu dia mais sagrado.

— É neste dia que eles fazem procissões e se chicoteiam, enfiam-se pregos e se flagelam?

— É, uma coisa louca do nosso ponto de vista. O Reza Xá tornou este costume ilegal, mas a religião dos xiitas é uma coisa apaixonada, que precisa de expressões externas de penitência e luto. O martírio está profundamente enraizado nos xiitas, e é venerado no Irã. Assim como a revolta contra os usurpadores.

— Então a guerra está declarada, os fiéis contra o xá?

— Oh, sim. Com fanatismo, de ambos os lados. Para os xiitas, o mulá é o único meio de interpretação, o que, portanto, lhe dá enorme poder. Ele é intérprete, legislador, juiz e líder. E os maiores mulás são os aiatolás.

E Khomeini é o Grande aiatolá, pensava McIver, olhando fixamente para a noite sangrenta que cobria Jaleh. Ele é o maior, e queira ou não, toda matança, todo derramamento de sangue, todo sofrimento e loucura têm que ser atribuídos a ele, sejam ou não justificados.