— O que tem ele?
— Sofreu um ataque cardíaco fatal esta manhã.
— É uma pena.
O homem do DIC acrescentou, em tom impassíveclass="underline"
— Tem razão, senhor. O corpo está sendo cremado esta manhã. Foi um ataque fulminante.
— Lamentável. — O coronel levantou-se. — Estou sendo transferido para o exterior. — Ele se permitiu um pequeno sorriso. — Uma promoção um tanto importante.
— Parabéns, senhor. Fez por onde.
Mary Ashley concluiu mais tarde que só não perdera a sanidade porque ficara em estado de choque. Tudo parecia estar acontecendo com outra pessoa. Ela se encontrava debaixo d'água, deslocando-se devagar, ouvindo vozes distantes, filtradas por algodão.
O serviço fúnebre foi realizado na Agência Funerária Mass-Hinitt-Alexander, na Jefferson Street. Era um prédio azul, com um pórtico branco e um enorme relógio branco suspenso por cima da entrada. A funerária estava repleta de amigos e colegas de Edward. Havia dezenas de coroas e buquês. Uma das coroas maiores tinha um cartão que dizia simplesmente: "Meus pêsames mais profundos, Paul Ellison."
Mary, Beth e Tim sentaram-se sozinhos na pequena sala reservada para a família. As crianças estavam imóveis, com os olhos vermelhos.
O caixão com o corpo de Edward estava fechado. Mary não suportava pensar no motivo para isso. O ministro estava falando:
— Senhor, tens sido a nossa morada. Em todas as gerações, antes de as montanhas serem formadas ou quando criastes a terra e o mundo, de eternidade para eternidade. Tu és Deus. Por isso, não teremos medo, mesmo que a terra mude e as montanhas sejam arremessadas para as profundezas dos mares...
Ela e Edward estavam no pequeno barco a vela no Lago Milford.
— Gosta de velejar? — perguntara ele, na primeira noite em que saíram juntos.
— Nunca velejei.
— Então vamos velejar no sábado. Está marcado. Casaram uma semana depois.
— Sabe por que casei com você? — indagava Edward, zombeteiro. — Passou no teste. Riu muito e não caiu na água.
Quando o serviço fúnebre acabou, Mary e as crianças foram para a limusine preta e comprida que encabeçara o cortejo fúnebre até o cemitério.
O Cemitério Highland, na Ash Street, é um vasto parque, contornado por um caminho de cascalho. É o mais antigo cemitério de Junction City, e muitas das lápides que ali estão já foram erodidas pelo tempo. Por causa do frio intenso, a cerimônia à beira do túmulo foi breve.
— Eu sou a ressurreição e a vida; aquele que acreditar em mim, embora esteja morto, haverá de viver; e quem viver e acreditar em mim jamais morrerá. Eu sou aquele que vive e estava morto; estou vivo por toda a eternidade.
Misericordiosamente, tudo acabou. Mary e as crianças ficaram paradas ao vento uivante, observando o caixão ser baixado para a terra congelada e indiferente.
Adeus, meu querido.
A morte é supostamente o fim, mas para Mary Ashley foi o começo de um inferno insuportável. Ela e Edward haviam conversado sobre a morte, e Mary se dispuser a a aceitar o inevitável; só que agora a morte assumia uma realidade imediata e aterradora. Não era mais um evento vago que só ocorreria em algum dia distante e remoto. E não havia meio de enfrentar. Tudo em Mary clamava para negar o que acontecera a Edward. Quando ele morrera, tudo o que era maravilhoso morrera junto. A realidade insistia em atingi-la em renovadas ondas de choque. Ela se descobriu furiosa com Deus. Por que não me levou primeiro?, indagou. Estava furiosa com Edward por abandoná-la, furiosa com os filhos, furiosa consigo mesma.
Sou uma mulher de 35 anos com dois filhos e não sei quem eu sou. Quando eu era a senhora Edward Ashley, tinha uma identidade, pertencia a alguém que também me pertencia.
O tempo estava passando, escarnecendo de seu vazio. Sua vida era como um trem em disparada, sobre o qual não tinha o menor controle.
Florence, Douglas e outros amigos lhe faziam companhia, tentando atenuar seu sofrimento, mas Mary desejava que todos sumissem, que a deixassem em paz. Florence apareceu uma tarde e encontrou Mary diante da televisão, assistindo a uma partida de futebol americano do time da Universidade Estadual do Kansas.
— Ela nem percebeu que eu estava lá — contou Florence ao marido naquela noite. — Concentrava-se desesperadamente no jogo. — Ela estremeceu. — Foi assustador.
— Por quê?
— Mary detesta o futebol americano. Era Edward que não perdia um jogo.
Mary precisou recorrer às últimas reservas de força de vontade para cuidar dos destroços deixados pela morte de Edward. Havia o testamento e o seguro, as contas bancárias, as taxas e contas a pagar, e hipotecas e bens sujeitos a penhor a e déficits, e ela queria gritar para os advogados, banqueiros e contadores que a deixassem em paz.
Não quero pensar em nada, disse a si mesma. Edward estava morto e as pessoas só queriam falar em dinheiro.
Mas ela foi obrigada a enfrentar os problemas.
Frank Dunphy, o contador de Edward, disse:
— Infelizmente, senhora Ashley, as contas e as despesas com o funeral vão consumir uma boa parte do dinheiro do seguro de vida. Seu marido não costumava pressionar os pacientes para lhe pagarem. Devia muito dinheiro. Falarei com uma agência de cobrança para procurar as pessoas que estão devendo...
— Não faça isso — protestou Mary com veemência. — Edward não gostaria.
Dunphy ficou desorientado.
— Neste caso, sobram-lhe trinta mil dólares em dinheiro e esta casa, que está hipotecada. Se vendesse a casa...
— Edward não gostaria que eu vendesse.
Ela se mantinha rígida, controlando seu desespero. Dunphy pensou: Eu gostaria que minha mulher se preocupasse tanto assim comigo.
O pior ainda estava para acontecer. Chegou o momento de cuidar das coisas pessoais de Edward. Florence ofereceu-se para ajudar, mas Mary disse:
— Não. Edward gostaria que eu cuidasse de tudo sozinha.
Havia tantas coisas pequenas e íntimas. Uma dúzia de cachimbos, uma lata nova de fumo, dois óculos de leitura, anotações para uma conferência médica que ele nunca faria. Mary entrou no closet de Edward e passou as mãos pelos ternos que ele nunca mais tornaria a usar. A gravata azul que ele pusera na última noite que passaram juntos. As luvas e o cachecol que o mantinham aquecido contra os ventos frios do inverno. Ele não precisaria mais em sua sepultura gelada. Separou o aparelho de barba e a escova de dentes, movimentando-se como um autômato.
Encontrou bilhetes amorosos que haviam escrito um para o outro, trazendo recordações de dias difíceis, quando Edward se iniciara na clínica particular, um jantar do Dia de Ação de Graças sem peru, piqueniques no verão e passeios de trem no inverno, a primeira gravidez, ambos lendo e tocando música clássica para Beth ainda no útero, a carta de amor que Edward escrevera por ocasião do nascimento de Tim, a maçã dourada que ele lhe dera quando começara a dar aulas, uma centena de outras coisas que fizeram lágrimas aflorarem a seus olhos. A morte de Edward era como um cruel truque de mágica. Num momento Edward estava ali, vivo, falando, sorrindo, amando, e no instante seguinte desaparecera na terra fria.
Sou uma pessoa amadurecida. Tenho de aceitar a realidade. Não, não sou amadurecida. Não posso aceitar. Não quero viver.
Ela permaneceu acordada durante a longa noite, pensando como seria simples ir ao encontro de Edward, acabar com a agonia insuportável, ficar em paz. Somos criados para esperar um final feliz, pensou Mary. Mas não existe nenhum final feliz. Há apenas a morte à nossa espera. Encontramos o amor e a felicidade que de repente nos são arrebatados sem qualquer motivo. Estamos numa espaçonave abandonada, deslizando a esmo entre as estrelas. O mundo é Dachau e somos todos judeus.