Acabou cochilando, e durante a madrugada seus gritos desesperados acordaram os filhos, que correram para o seu quarto e se meteram na cama, abraçando-a.
— Você não vai morrer, não é? — murmurou Tim.
Mary pensou: Não posso me matar. Eles precisam de mim. Edward nunca me perdoaria.
Tinha de continuar a viver. Pelos filhos. Tinha de lhes dar o amor que Edward não seria mais capaz de proporcionar. Todos somos tão carentes sem Edward. Precisamos demais um do outro. É irônico que a morte de Edward seja mais difícil de aceitar porque tivemos uma vida comum maravilhosa. Há muitas razões para sentir saudade dele, muitas lembranças de coisas que nunca mais tornarão a acontecer. Onde está você, Deus? Está me ouvindo? Ajude-me. Por favor, ajude-me.
Ring Lardner disse: "Três em cada três vão morrer, portanto cale a boca e dê as cartas." Tenho de dar as cartas. Estou sendo egoísta demais. Estou me comportando da pior forma possível, como se fosse a única pessoa do mundo que sofre. Deus não está tentando me punir. A vida é uma caixa de saldos cósmica. Neste momento, em algum lugar do mundo, alguém está perdendo um filho, esquiando por uma montanha abaixo, tendo um orgasmo, cortando os cabelos, deitado num leito de hospital, cantando num palco, se afogando, casando, passando fome numa sarjeta. No final das contas, não somos todos essa mesma pessoa? Uma eternidade é um bilhão de anos, e há uma eternidade, cada átomo de nossos corpos era parte de uma estrela. Preste atenção a mim, Deus. Somos todos uma parte de Seu universo, e se morremos, parte do Seu universo morrerá conosco.
Edward estava por toda parte.
Nas canções que Mary ouvia no rádio, nas colinas por que haviam passado juntos. Na cama ao seu lado quando ela despertava ao nascer do sol.
Tenho que levantar cedo esta manhã, querida. Preciso fazer uma histerectomia e uma operação de quadris.
A voz de Edward soava nitidamente. Ela começou a lhe falar: Estou preocupada com as crianças, Edward. Não querem ir à escola. Beth diz que é porque têm medo de não me encontrar aqui quando voltarem.
Mary visitava o cemitério todos os dias, parada no ar gelado, lamentando o que perdera para sempre. Mas isso não lhe proporcionava qualquer conforto. Você não está aqui, pensou ela. Diga-me onde você está. Por favor.
Lembrou-se de um conto de Marguerite Yourcenar, 'Como Wang-Fô foi salvo'. Um artista chinês fora condenado à morte pelo imperador por mentir, por criar imagens de um mundo cuja beleza era contestada pela realidade. Mas o artista enganou o imperador, pintando um barco e usando-o para escapar. Quero escapar também, pensou Mary. Não suporto mais continuar aqui sem você, querido.
Florence e Douglas tentavam confortá-la.
— Ele está em paz — diziam a Mary.
E uma centena de outros clichês. As palavras fáceis de consolo, só que não havia nenhum consolo. Não agora. Nem nunca.
Ela acordava no meio da noite e corria para os quartos dos filhos, a fim de se certificar de que eles estavam seguros. Meus filhos vão morrer, pensou Mary. Todos vamos morrer. Pessoas andavam calmamente pelas ruas. Idiotas, rindo e felizes — e todos vão morrer. Suas horas estavam contadas, e as desperdiçavam em estúpidos jogos de cartas, assistindo a filmes tolos e a partidas de futebol americano sem o menor sentido. Acordem!, ela tinha vontade de gritar. A terra é o matadouro de Deus, e somos o Seu gado. Será que não sabem o que vai lhes acontecer e com todas as pessoas a quem amam?
A resposta lhe veio lentamente, dolorosamente, através dos véus negros do desespero. Claro que sabiam. Os jogos constituíam uma forma de desafio, o riso era um ato de bravata — uma bravata nascida do conhecimento de que a vida era finita, de que todos enfrentavam o mesmo destino; e pouco a pouco o medo e a ira de Mary foram se desvanecendo, transformando-se em espanto pela coragem de seus semelhantes. Estou envergonhada de mim mesma. Tenho de encontrar meu caminho pelo labirinto do tempo. Ao final, cada um de nós está sozinho, mas enquanto isso devemos nos manter unidos, proporcionando uns aos outros conforto e afeição.
A Bíblia diz que a morte não é o fim, mas apenas uma transição. Edward nunca a deixaria e aos filhos. Ele estava por ali, em algum lugar.
Ela mantinha conversas com o marido. Falei com a professora de Tim hoje. As notas dele estão melhorando. Beth está de cama, resfriada. Lembra de como ela está sempre resfriada nesta época do ano? Vamos jantar na casa de Florence e Douglas esta noite. Eles têm sido maravilhosos, querido.
E no meio da noite escura: O reitor esteve aqui em casa. Queria saber se eu planejava voltar a dar aulas na universidade. Respondi que agora não. Não quero deixar as crianças sozinhas, mesmo que por pouco tempo. Elas precisam muito de mim. Você acha que eu deveria voltar um dia?
Poucos dias depois: Douglas foi promovido, Edward. Tornou-se o chefe de equipe no hospital.
Poderia Edward ouvi-la? Ela não sabia. Haveria um Deus e uma vida posterior? Ou tudo não passava de uma fábula? T.S. Eliot disse: "Sem alguma espécie de Deus, o homem nem sequer é muito interessante."
O presidente Paul Ellison, Stanton Rogers e Floyd Baker estavam reunidos no Gabinete Oval. O secretário de Estado disse:
~ Senhor presidente, estamos sofrendo muita pressão. Não creio que possamos protelar por mais tempo a indicação de um embaixador para a Romênia. Eu gostaria que examinasse a lista que lhe entreguei e escolhesse...
— Obrigado, Floyd. Agradeço seu esforço, mas ainda acho que Mary Ashley seria ideal. Sua situação doméstica mudou. O que foi uma tragédia do azar para ela pode ser uma sorte para nós. Quero tentar de novo. — Ele se virou para Stanton Rogers. — Stan, gostaria que você voasse até o Kansas e a persuadisse a aceitar o posto.
— Se é assim que deseja, senhor presidente, partirei o mais depressa possível.
Mary estava fazendo o jantar quando o telefone tocou. Ela atendeu, e uma telefonista disse:
— Aqui é da Casa Branca. O presidente deseja falar com a senhora Edward Ashley.
Agora não, pensou Mary. Não quero falar com ele nem com ninguém.
Lembrou-se de como o primeiro telefonema do presidente a deixara excitada. Agora não tinha o menor sentido. Ela disse:
— Aqui é a senhora Ashley, mas...
— Quer aguardar um momento, por favor?
A voz familiar soou pela linha momentos depois:
— Aqui é Paul Ellison, senhora Ashley. Quero que saiba como lamentamos profundamente o que aconteceu com seu marido. Fui informado de que ele era um homem extraordinário.
— Obrigada, senhor presidente. Foi muita gentileza sua me mandar as flores.
— Não quero me intrometer em sua privacidade, senhora Ashley, e sei que tudo ainda está muito recente. Mas agora que sua situação doméstica mudou, estou lhe pedindo para reconsiderar a oferta do posto de embaixadora.
— Obrigada, mas eu não poderia...
— Peço que me escute, por favor. Estou mandando alguém até aí de avião para uma conversa. Seu nome é Stanton Rogers. Eu agradeceria se pelo menos o recebesse.
Mary não sabia o que dizer. Como explicar que seu mundo fora virado pelo avesso, que sua vida fora destruída? Só Beth e Tim tinham importância agora. Resolveu que, por uma questão de cortesia, receberia o .homem e recusaria da forma mais graciosa possível.
— Eu o receberei, senhor presidente, mas não vou mudar de idéia.
Havia um bar popular no boulevard Bineau que os guardas de Marin Groza freqüentavam quando não estavam de serviço na villa em Neuilly. Até mesmo Lev Pasternak aparecia no bar de vez em quando. Angel escolheu uma mesa num ponto em que podia ouvir as conversas. Os guardas, longe das rotinas rígidas na villa, gostavam de beber e sempre falavam quando bebiam. Angel ficava escutando, procurando o ponto vulnerável da villa. Sempre havia um ponto vulnerável. Era preciso apenas ser bastante esperto para descobri-lo.