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─ Sim, Léon?

─ Sinto muito incomodá-lo, mas achei que deveria saber.

─ Sim?

Dessard não prestava muita atenção, pois sua mente estava ocupada com a delicada tarefa de completar a distribuição de lugares na mesa do comandante para cada noite da viagem. O comandante não era um homem dotado de espírito social, e ter que jantar com seus passageiros todas as noites era uma provação para ele. Era tarefa de Dessard cuidar para que o grupo fosse agradável.

─ É sobre Mme Temple... ─ começou Léon.

Imediatamente Dessard largou o lápis e levantou a cabeça, os olhinhos negros atentos.

─ Sim?

─ Passei pelo camarote dela há alguns minutos, e ouvi pessoas discutindo em voz alta e um grito. Era difícil ouvir com clareza através da porta, mas soava como se ela estivesse dizendo: "Você me matou, você me matou". Achei que era melhor não interferir, assim vim procurá-lo.

Dessard assentiu.

─ Você fez bem. Vou verificar para assegurar-me de que ela está bem.

Dessard observou o camareiro se retirar. Era inconcebível que alguém pudesse fazer mal a uma mulher como Mme Temple. Era um ultraje ao espírito gaulês de cavalheirismo de Dessard. Pôs o quepe do uniforme, lançou um rápido olhar ao espelho na parede e dirigiu-se para a porta. O telefone tocou. O comissário-chefe hesitou e então atendeu.

─ Dessard.

─ Claude... ─ era a voz do imediato. ─ Pelo amor de Deus, mande alguém até o teatro com um esfregão. Há sangue por todo lado.

Dessard sentiu de repente uma sensação de vazio no fundo do estômago.

─ Imediatamente.

Desligou o telefone, falou com um dos faxineiros, depois telefonou para o médico de bordo, tentando fazer sua voz soar normal.

─ André? É Claude. Eu só estava querendo saber se apareceu alguém aí precisando de tratamento médico? Não, não. Não estava pensando em comprimidos para enjôo. Esta pessoa estaria sangrando, muito talvez. Sei. Obrigado.

Dessard desligou, sentindo um crescente mal-estar. Saiu do escritório e dirigiu-se à suíte de Jill Temple. Estava a meio do caminho do seu destino quando ocorreu o evento estranho seguinte.

Quando Dessard ia chegando ao convés, sentiu o ritmo do movimento do navio mudar. Olhou de relance para o oceano e viu que tinham chegado ao Farol Ambrose, onde deixariam o rebocador e o navio se dirigir à margem e parar. Alguma coisa extraordinária estava acontecendo.

Dessard correu até a amurada e olhou para baixo. No mar, lá embaixo, o rebocador-piloto tinha sido encostado à escotilha de carga do Bretagne, e dois marinheiros estavam transferindo bagagem do transatlântico para o rebocador. Enquanto Dessard observava, um passageiro saiu pela escotilha do navio, passando para o rebocador. Dessard só conseguiu ver de relance as costas da pessoa, mas achou que com certeza deveria ter-se enganado quanto à sua identidade. Simplesmente não era possível. De fato, o incidente de um passageiro deixar o navio daquela maneira era tão extraordinário que o comissário-chefe sentiu um leve frisson de temor. Virou-se, seguindo rapidamente para a suíte de Jill Temple. Não houve resposta à sua batida na porta. Bateu de novo, dessa vez um pouco mais forte.

Madame Temple... É Claude Dessard, o comissário-chefe. Gostaria de saber se lhe posso ser útil em alguma coisa.

Não houve resposta. Naquela altura, o sistema de alarme interno de Dessard estava berrando. Seus instintos lhe diziam que havia alguma coisa terrivelmente errada, e teve um pressentimento de que estava centralizada, de alguma maneira, naquela mulher. Uma série de pensamentos loucos e ultrajantes passou pela sua cabeça. Fora assassinada, raptada ou... Experimentou o trinco da porta. Estava destrancada. Lentamente, Dessard empurrou e abriu a porta. Jill Temple estava de pé na extremidade mais distante do camarote. Dessard abriu a boca para falar, mas alguma coisa na rigidez gelada daquele vulto o deteve. Ficou parado por um momento, pensando em sair silenciosamente, quando de repente o camarote se encheu de um som sinistro e penetrante, como o de um animal ferido, alucinado de dor. Impotente diante de um sofrimento pessoal tão profundo. Dessard se retirou, fechando a porta cuidadosamente atrás de si.

Ficou parado do lado de fora do camarote por um momento, ouvindo os gemidos vindos lá de dentro. Então, profundamente abalado, virou-se, dirigindo-se para o teatro do navio, no convés. Um faxineiro estava limpando um rasto de sangue defronte à sala de espetáculos.

"Mon Dieu", ─ pensou Dessard. ─ "O que mais?"

Experimentou a porta. Estava destrancada. Dessard entrou no grande e moderno auditório, que tinha capacidade para acomodar seiscentas pessoas sentadas. O auditório estava vazio. Obedecendo a um impulso, foi até a cabine de projeção. A porta estava trancada. Só duas pessoas tinham as chaves daquela porta: ele e o operador. Dessard abriu-a com sua chaves e entrou. Tudo parecia normal. Foi até onde estavam os dois projetores Century de trinta e cinco milímetros e pôs as mãos sobre eles.

Um deles estava quente.

Nos alojamentos da tripulação, no convés D, Dessard encontrou o operador, que lhe garantiu desconhecer se a sala tinha sido usada.

De volta a seu escritório, Dessard cortou caminho pela cozinha. O chef o deteve furioso.

─ Olhe só o que um idiota desses fez!

Numa mesa de cozinha com tampo de mármore, estava um lindo bolo de casamento de seis camadas, e no topo delicados bonequinhos feitos de açúcar, representando um noivo e uma noiva.

Alguém tinha esmagado a cabeça da noiva.

─ Foi naquele momento ─ Dessard costumava dizer aos clientes, no seu bistrô, ─ que eu soube com certeza que alguma coisa terrível estava para acontecer.

LIVRO

PRIMEIRO

1

Em 1919, Detroit, no Estado de Michigan, era a única cidade industrial do mundo extremamente bem-sucedida. A Primeira Guerra Mundial tinha acabado, e Detroit desempenhara um papel significativo na vitória dos Aliados, fornecendo-lhes tanques, caminhões e aviões. Agora, terminada a ameaça dos hunos, mais uma vez as fábricas de automóveis voltaram suas energias para a fabricação desses veículos. Logo, quatrocentos automóveis por dia estavam sendo fabricados, montados e embarcados. Mão-de-obra especializada e não-especializada vinha de todas as partes do mundo em busca de emprego nessa indústria. Italianos, irlandeses, alemães ─ vinham todos numa enxurrada.

Entre os recém-chegados estavam Paul Templerhaus e sua esposa, Frieda. Paul tinha sido aprendiz açougueiro em Munique. Com o dote que recebera quando se casou com Frieda, tinha emigrado para Nova York e aberto um açougue, que rapidamente apresentara déficit. Então, mudou-se para St. Louis, Boston, e finalmente Detroit, fracassando espetacularmente em cada cidade. Numa época em que todos os negócios estavam se expandindo rapidamente e na qual o fluxo imigratório crescente significava uma demanda de carne cada vez maior, Paul Templerhaus conseguia perder dinheiro em cada lugar onde abria um açougue. Era bom açougueiro, mas de uma incompetência desesperadora para negócios. Na verdade, estava mais interessado em escrever poesia do que em ganhar dinheiro. Passava horas imaginando rimas e imagens poéticas. Ele as punha no papel e as enviava para jornais e revistas, que nunca compraram nenhuma de suas obras-primas. Para Paul o dinheiro não tinha nenhuma importância. Dava crédito a todo mundo, e a notícia se espalhava rapidamente: se você não tinha dinheiro e queria carne da melhor qualidade, devia procurar Paul Templerhaus.

Frieda, sua esposa, era uma moça feia, que não tinha tido nenhuma experiência com homens antes que Paul aparecesse e a pedisse em casamento ─ ou melhor, como mandava o costume na época, ao seu pai. Frieda tinha suplicado ao pai que aceitasse o pedido de Paul, mas o velho não precisara ser convencido, pois havia muito tempo que temia desesperadamente que fosse ter que agüentá-la para o resto da vida. Tinha até aumentado o dote para que Frieda e o marido pudesse deixar a Alemanha e ir para o Novo Mundo.