De repente, as batidas se espaçaram, e a princesa entendeu o que havia acabado de acontecer.
Ele a tinha visto! Ele a tinha visto!
Golpeou a porta com vigor renovado, gritando a plenos pulmões.
Uma voz ao seu ouvido disse:
— Não adianta. Ele é muito cabeza-dura.
Ela correu os olhos à volta e se deparou com o olhar impertinente da aldrava. O objeto balançou as sobrancelhas de metal para ela e falou de maneira indistinta através da argola de ferro batido.
— Eu sou a princesa Keli, herdeira ao trono de Sto Lat — avisou, orgulhosa, contendo seu pavor. — E não falo com acessórios de porta.
— Bem, eu zou zó uma aldrava e pozo falar com quem quiser — afirmou a gárgula, satisfeita. — Aí pozo dizer que o patrão está tendo um dia difízil e não quer zer incomodado. Mas vozê poderia tentar a palavrinha mágica — acrescentou. — Vindo de uma mulher bonita, funziona noventa porzento das vezes.
— Palavrinha mágica? Que palavrinha mágica?
A aldrava riu.
— Dona, zerá que não lhe enzinaram nada?
Ela se empertigou. Também vinha tendo um dia difícil. O pai executara uma centena de inimigos em guerra. Ela daria conta de uma aldrava.
— Eu fui ensinada — informou, em bom tom — pelos melhores professores do país.
A aldrava não pareceu impressionada.
— Ze não lhe enzinaram a palavrinha mágica — advertiu, calmamente —, não podem zer tão bons azim.
Keli estendeu a mão, pegou a argola pesada e bateu-a na porta. A aldrava olhou de esguelha para ela.
— Com forza! — pediu. — Azim, que eu gozto!
— Você é nojento!
— Ahh, que delízia, de novo...
Abriu-se uma brecha na porta. Era possível divisar o cabelo encaracolado.
— Senhorita, eu já disse que estamos fech...
Keli entregou os pontos.
— Por favor me ajude — disse. — Por favor!
— Eztá vendo? — perguntou a aldrava, triunfante. — Maiz zedo ou maiz tarde todo mundo lembra a palavrinha mágica!
Keli já comparecera a solenidades em Ankh-Morpork e havia conhecido magos seniores da Universidade Invisível, a maior faculdade de magia do Disco. Alguns eram altos, muitos eram gordos e quase todos sempre se encontravam imponentemente vestidos, ou ao menos acreditavam nisso.
Na verdade, assim como nas artes mundanas, existem modismos na magia, e a tendência de parecer um vereador ancião era apenas temporária. Gerações anteriores já seguiram o objetivo de parecer pálidas e interessantes, druídicas e sujas, ou misteriosas e sombrias. Mas Keli estava acostumada com magos que eram uma espécie de montanha de pêlos com voz chiada, e Ígneo Cortabem não se encaixava bem nessa imagem.
Ele era novo. Bem, quanto a isso não se podia fazer nada — até os magos precisavam começar jovens. Mas também não tinha barba.
— Aceita uma bebida? — ofereceu ele, sorrateiramente chutando uma túnica para debaixo da mesa.
Keli procurou um lugar para se sentar que não estivesse ocupado com roupas sujas ou louça de barro usada e sacudiu a cabeça. Cortabem notou sua fisionomia.
— Está um pouco bagunçado — tratou de acrescentar, jogando os restos de uma lingüiça no chão. — A senhora Nugent sempre vem duas vezes por semana e limpa a casa para mim, mas viajou para visitar a irmã, que sofreu uma de suas crises. Tem certeza? É rápido. Ontem mesmo vi uma xícara limpa aqui.
— Seu Cortabem, estou com um problema — disse Keli.
— Espere aí.
Ele estendeu o braço até o gancho sobre a lareira e pegou um chapéu pontudo que já vira dias melhores, embora pelo aspecto não tivessem sido tão bons assim, e falou:
— Certo. Mande lá.
— O que tem de tão importante no chapéu?
— Ah, é essencial. Precisamos estar com o chapéu adequado para magia. Nós, magos, sabemos disso.
— Se você está dizendo... Você me enxerga?
Ele a fitou.
— Enxergo, enxergo. Sem dúvida diria que sim.
— E me ouve? Está me ouvindo, não está?
— Muito bem. Estou. Todas as sílabas tinindo no devido lugar. Sem problema.
— Então ficaria surpreso se eu dissesse que ninguém mais na cidade me vê?
— Além de mim?
Keli bufou.
— E sua aldrava.
Cortabem puxou uma cadeira e se sentou. Contorceu-se um pouco. Ganhou um ar pensativo. Então se levantou, vasculhou o armário de trás e desencavou uma massa avermelhada que um dia poderia ter sido meia pizza[2]. Encarou-a com ar melancólico.
— Acredita que passei a manhã inteira procurando por isso? — perguntou. — É de Todos os Sabores, com pimentões extras.
Começou a beliscar o negócio e de repente se lembrou de Keli.
— Nossa, me desculpe — pediu. — Onde estão meus modos? O que você vai pensar de mim? Aqui. Pegue uma anchova. Por favor.
— Você não estava me ouvindo? — irritou-se Keli.
— E você se sente invisível? Quer dizer, na sua cabeça? — perguntou Cortabem.
— Claro que não. Só sinto raiva. Então quero que leia minha sorte.
— Bem, não sei, não. Parece mais assunto médico e...
— Eu pago.
— É ilegal, sabia? — perguntou Cortângulo, com tristeza. — O antigo rei proibiu a adivinhação em Sto Lat. Não gostava de magos.
— Pago bem.
— A senhora Nugent disse que a nova menina, a princesa, deve ser pior. Parece que é muito arrogante. Não faz o tipo que olha com benevolência para os praticantes das artes ocultas.
Keli sorriu. Os membros da corte que já haviam presenciado esse sorriso teriam se apressado em arrastar Cortabem para um lugar seguro — como outro continente —, mas ele apenas continuou ali, tentando catar pedaços de cogumelo da roupa.
— Entendo que ela tenha um temperamento difícil — considerou Keli. — Mas ainda assim não me surpreenderia se não o expulsasse da cidade.
— Ai, meu Deus — murmurou Cortabem. — Você acha?
— Olhe aqui — disse Keli —, não precisa ler meu futuro, só o presente. Nem a princesa faria objeção a isso. Se quiser, posso trocar uma palavrinha com ela — acrescentou, com ar de gente importante.
Cortabem se iluminou.
— Ah, você a conhece? — perguntou.
— Conheço. Mas às vezes acho que não muito bem.
Cortabem suspirou e vasculhou o entulho sobre a mesa, removendo pilhas de pratos velhos e os restos petrificados de várias refeições. Por fim, desenterrou um estojo de couro grudado a uma fatia de queijo.
— Bem — disse, sem muita convicção —, essas são as cartas do Caro. A refinada sabedoria dos Antigos e tal. Também tem o Ching Aling, dos centrolandeses. E a coqueluche da alta-roda. Não trabalho com folhas de chá.
— Vou experimentar o Chinring.
— Então jogue esses caules de milefólio para o alto.
Ela obedeceu. Eles olharam o arranjo resultante.
— Hum — soltou Cortabem, depois de um tempo. — Bom, tem um na lareira, um na caneca de cacau, um na rua, que pena, a janela!, um na mesa e um, não, dois atrás da cômoda. Espero que a senhora Nugent ache o resto.
— Você não disse com que força. Jogo outra vez?
— N-nããao, acho que não.
Cortabem folheou as páginas do livro amarelado que antes estivera escorando a perna da mesa.
— Parece que o arranjo faz sentido. É, cá estamos, Octograma 8.887: Ilegalidade, o Ganso Irreparável. Que cruzamos aqui... espere... espere... isso mesmo. Pronto.
— E aí?
— Sem verticalidade, sabiamente o imperador vermelho avança na hora do chá; à noite o molusco faz silêncio entre as flores da amendoeira.
— E então? — indagou Keli, com reverência. — O que quer dizer?
2
A primeira pizza do Disco foi criada pelo místico klatchiano Ronron “Revelação Joe” Shuwadhi, que alegava ter aprendido a receita em sonho com o próprio Criador do Discworld — que aparentemente afirmara ser isso o que sempre tivera em mente. Os viajantes que atravessaram o deserto e viram o original, milagrosamente conservado na Cidade Proibida de Ee, dizem que na ocasião o objetivo do Criador fora uma pizza pequena de queijo e peperone com azeitonas pretas[10], e coisas como mares e montanhas foram acrescentadas no calor da última hora, como sempre acontece.