Vinte minutos antes, Mortimer estivera cansado o bastante para cair no sono. Agora sentia o sangue fervilhar. Era aquele tipo de energia desvairada que nos vem tarde da noite e pela qual sabemos que vamos pagar por volta do meio-dia seguinte, mas agora ele precisava de ação ou seus músculos saltariam para fora.
— Quero vê-la — anunciou. — Se você não pode fazer nada, talvez eu possa.
— Tem guardas do lado de fora do quarto — advertiu Cortabem. — Falo isso apenas a título de observação. Nem por um minuto imagino que eles venham a fazer alguma diferença.
Era meia-noite em Ankh-Morpork, mas na grande cidade gêmea a única diferença entre o dia e a noite era o escuro. Os mercados estavam apinhados, os transeuntes ainda se encontravam amontoados na área das vagabundas, os perdedores das eternas e bizantinas lutas de gangue da cidade afundavam em silêncio nas águas geladas do rio com pesos de chumbo amarrados aos pés, negociantes de várias delícias ilegais e mesmo ilógicas realizavam suas vendas, assaltantes assaltavam, facas reluziam à luz das estrelas em becos escuros, astrólogos davam início ao trabalho do dia e, nas sombras, um guarda-noturno que havia errado o caminho tocava a campainha de casa e gritava:
— Querida chegueiaaaahhh...
Mas a Associação Comercial de Ankh-Morpork não ficaria nem um pouco satisfeita com a insinuação de que a única diferença entre a cidade e um pântano era o número de patas de um jacaré. De fato, nas áreas mais distintas de Ankh — que costumavam ficar nas regiões montanhosas, onde existe alguma chance de se pegar um pouco de brisa —, as noites são suaves e têm aroma de habiscina e flor de cecília.
Nesta noite em particular também tinham cheiro de nitrato de potássio, porque era o décimo aniversário da ascensão do Patrício[7], e ele tinha convidado alguns amigos — no caso, quinhentos — para um drinque e estava soltando fogos. O riso e o ocasional gorgolejo da paixão enchiam os jardins do palácio, e a noite acabava de chegar a essa interessante fase em que todo mundo já bebeu demais, mas não o suficiente para cair. E o tipo de fase em que a pessoa faz coisas das quais vai se lembrar vermelha de vergonha para o resto da vida, como assobiar com papeizinhos e rir até passar mal.
De fato, cerca de duzentos convidados do Patrício estavam agora cambaleando os passos da Dança da Serpente, um exótico costume morporkiano que consiste em ficar bastante bêbado, pegar a cintura da pessoa à frente e então bordejar e rir alto numa longa fila que atravessa o máximo possível de cômodos, de preferência aqueles com objetos fáceis de quebrar, enquanto os participantes chutam o ar mais ou menos no ritmo da batida, ou pelo menos de alguma batida. A dança já vinha acontecendo havia meia hora e tinha passado por todos os cantos do palácio, acolhendo dois trolls, o cozinheiro, o torturador-mor do Patrício, três garçons, um assaltante que estava de passagem e um pequeno e doméstico dragão do brejo.
Em algum lugar, no meio da dança, estava o gordo lorde Rodley de Quirm, herdeiro das fabulosas terras de Quirm, cuja atual preocupação eram os dedos finos a lhe apertarem a cintura. Banhado em álcool, seu cérebro tentava lhe chamar a atenção.
— Ei — gritou ele, por cima dos ombros, ao atravessar pela décima vez a imensa cozinha. — Não aperte tanto, por favor.
— SINTO MUITO.
— Sem problema, amigo. Conheço você? — perguntou o lorde Rodley, chutando o ar vigorosamente ao som da batida.
— POUCO PROVÁVEL. POR FAVOR, QUAL É O SENTIDO DESSA ATIVIDADE?
— Quê? — berrou lorde Rodley, em meio ao barulho de alguém chutando a porta de uma cristaleira e aos muitos gritos de alegria.
— O QUE É ISSO QUE ESTAMOS FAZENDO? — perguntou a voz, com paciência glacial.
— Nunca esteve numa festa? Aliás, cuidado com o copo.
— NÃO SAIO TANTO QUANTO GOSTARIA. POR FAVOR ME EXPLIQUE. TEM ALGUMA COISA A VER COM SEXO?
— Não, a menos que o sujeito chegue junto, meu velho, se é que você me entende — disse o lorde, e cutucou o conviva com o cotovelo. — Ai! — resmungou.
Um estrondo adiante assinalou o fim do bufê de frios.
— NÃO.
— O quê?
— NÃO ENTENDO.
— Cuidado com o creme ali, escorrega... Olhe, é só uma dança. A gente faz por diversão.
— DIVERSÃO?
— Exatamente. Tchá-tchá-tchá... e chuta! Houve uma pausa audível.
— QUEM É DIVERSÃO?
— Não, diversão não é ninguém, a gente é que se diverte.
— A GENTE ESTÁ SE DIVERTINDO?
— Achei que estivesse — respondeu o lorde, sem muita certeza. A voz estava começando a preocupá-lo, parecia lhe chegar diretamente ao cérebro.
— MAS O QUE É DIVERSÃO?
— Isso aqui!
— CHUTAR O AR COM FORÇA É DIVERSÃO?
— Bem, faz parte da diversão. Chute!
— OUVIR MÚSICA ALTA EM LUGARES QUENTES É DIVERSÃO?
— Talvez.
— COMO A DIVERSÃO SE MANIFESTA?
— Bem... olhe aqui, o sujeito se diverte ou não se diverte, não precisa me perguntar, a pessoa sente. Como entrou aqui? — acrescentou ele. — É amigo do Patrício?
— DIGAMOS QUE ELE ME DÁ TRABALHO. ACHEI QUE EU DEVESSE APRENDER ALGUMA COISA DOS PRAZERES HUMANOS.
— Parece que tem uma longa estrada pela frente.
— EU SEI. POR FAVOR, PERDOE MINHA LAMENTÁVEL IGNORÂNCIA. SÓ QUERO APRENDER. TODAS ESSAS PESSOAS, BEM... ESTÃO SE DIVERTINDO?
— Estão!
— ENTÃO ISSO É DIVERSÃO.
— Fico feliz que tenhamos resolvido isso. Cuidado com a cadeira — advertiu lorde Rodley, que agora se sentia bastante normal e pavorosamente sóbrio.
Baixinho, a voz de trás disse:
— ISSO É DIVERSÃO. BEBER EM EXCESSO É DIVERSÃO. NÓS ESTAMOS NOS DIVERTINDO. ELE ESTÁ SE DIVERTINDO. QUE DIVERTIDO!
Atrás de Morte, o pequeno dragão doméstico do Patrício segurou firme nos quadris de osso e pensou: com guardas ou sem guardas, da próxima vez que eu passar por uma janela aberta, vou correr feito uma besta.
Keli se endireitou na cama.
— Não dê nem mais um passo! — gritou. — Guardas!
— Não pudemos detê-lo — desculpou-se o primeiro guarda, enfiando o rosto envergonhado no vão da porta.
— Ele forçou passagem... — disse o segundo guarda, do outro lado do vão da porta.
— O mago falou que não tinha problema, e a gente ouviu dizer que todo mundo tem de escutá-lo porque...
— Está bem, está bem — gritou Keli, e devolveu a balista à mesinha de cabeceira, infelizmente esquecendo-se de ativar o dispositivo de segurança.
Houve um clique, um estalo de metal, um zunido pelo ar e um gemido. O gemido veio de Cortabem. Mortimer se virou para ele.
— Você está bem? — perguntou. — Foi atingido?
— Não — respondeu o mago, em voz baixa. — Não fui, não. Como está se sentindo?
— Meio cansado. Por quê?
— Ah, por nada. Por nada. Nenhuma sensação estranha?
— Não. Por quê?
— Ah, por nada, por nada.
Cortabem se virou e deu uma olhada na parede, atrás de Mortimer.
— Será que os mortos não têm paz? — protestou Keli, com amargor. — Pensei que uma das coisas com a qual se podia contar depois da morte era uma boa noite de sono.
Parecia que ela vinha chorando. Com uma perspicácia que o surpreendeu, Mortimer se deu conta de que ela sabia de tudo e aquilo a estava deixando ainda mais zangada do que antes.
— Não é justo — retrucou ele. — Vim aqui ajudar. Não é, Cortabem?
— Hummm? — perguntou Cortabem, que havia achado a flecha da balista enterrada no reboco e agora a estudava, desconfiado. — Ah, é. Veio, sim. Mas não vai funcionar. Desculpe, alguém tem um barbante?
7
Ankh-Morpork havia contemplado muitas formas de governo e acabara optando por uma democracia conhecida por “Um Homem, Um Voto”. O Patrício era o Homem; o Voto era dele.