Выбрать главу

— Hum — começou ele —, eu não preciso morrer para aceitar o trabalho, preciso?

— NÃO É OBRIGATÓRIO ESTAR MORTO.

— E... os ossos... ?

— SÓ SE VOCÊ QUISER.

Mortimer suspirou outra vez. A idéia começava a lhe agradar.

— Se meu pai concordar — advertiu ele.

Ambos olharam para Lezek, que estava coçando a barba.

— Mort, o que você acha? — perguntou, com a vivacidade de uma pessoa febril. — Não é o que todo mundo considera trabalho. Admito que não se trate do que eu tinha em mente. Mas dizem que o serviço funerário é uma profissão de muito respeito. Você decide.

— Serviço funerário? — surpreendeu-se Mort.

Morte assentiu e levou o dedo aos lábios num gesto conspiratório.

— Interessante... — disse Mort, devagar. — Acho que eu gostaria de experimentar.

— Onde o senhor disse que era a agência? — perguntou Lezek. — Fica longe?

— NÃO MAIS DO QUE A UMA SOMBRA DE DISTÂNCIA — respondeu Morte. — ONDE ESTAVA A CÉLULA PRIMORDIAL, LÁ ESTAVA EU. ONDE O HOMEM ESTÁ, ESTOU EU. QUANDO O ÚLTIMO SER VIVO SE ARRASTAR SOB O BRILHO DE ESTRELAS GELADAS, LÁ ESTAREI.

— Ah — disse Lezek. — O senhor viaja um bocado.

Ele pareceu intrigado, como alguém que se esforça para lembrar algo importante, e então desistiu.

Morte lhe deu um tapinha nas costas e se virou para Mortimer.

— TEM ALGUMA BAGAGEM, GAROTO?

— Tenho — respondeu Mort, e então se lembrou. — Mas acho que esqueci na loja, pai, a gente deixou o saco na loja de roupas!

— Vai estar fechada — afirmou Lezek. — Loja não abre no Réveillon dos Porcos. Você vai ter de voltar depois de amanhã... bem, amanhã.

— NÃO TEM IMPORTÂNCIA — garantiu Morte. — VAMOS EMBORA. COM CERTEZA MUITO EM BREVE VOU TER TRABALHO AQUI.

— Espero que voltem logo e nos visitem — ressaltou Lezek. Ele parecia estar lutando com seus pensamentos.

— Não acho que seja boa idéia — considerou Mort.

— Bem, rapaz, adeus — disse Lezek. — Faça o que mandarem, entendeu? E... desculpe, o senhor tem filho homem?

Morte pareceu surpreso.

— NÃO — respondeu.

— Se o senhor não se importa, eu gostaria de dar uma última palavrinha com o menino.

— ENTÃO VOU OLHAR O CAVALO — decidiu Morte, mais diplomático do que o habitual.

Lezek botou o braço em torno dos ombros do filho — com alguma dificuldade, por causa da diferença de tamanhos — e puxou-o delicadamente pela praça.

— Mort, sabe quando o tio Hamesh me falou dessa história de aprendizado? — sussurrou ele.

— Sei.

— Bem, ele também me contou outra coisa — confidenciou o homem. — Disse que não é raro o aprendiz herdar os negócios do mestre. O que acha disso?

— Hum. Não sei — respondeu Mort.

— Vale a pena pensar a respeito — insistiu Lezek.

— Pai, eu estou pensando a respeito.

— Muitos rapazes começaram assim — justificou Lezek. — Mostram seu valor, ganham à confiança do mestre e, bem, se tiver alguma filha na casa... o Seu, hã, Seu Fulano falou alguma coisa de filhas?

— Seu quem? — perguntou Mort.

— O Seu... novo mestre.

— Ah. Ele. Não. Acho que não — respondeu Mort. — Não parece ser do tipo que se liga em casamento.

— Muitos meninos inteligentes devem seus avanços às núpcias — apontou Lezek.

— Jura?

— Mort, você não tá prestando atenção!

— O quê?

Lezek se deteve e virou o menino, a fim de encará-lo.

— Você realmente vai ter de se esforçar mais — disse ele. — Será que não entende? Se pretende ser alguma coisa na vida, precisa escutar. É o seu pai que está lhe dizendo isso.

Mortimer fitou o rosto do pai. Queria dizer uma porção de coisas: queria mostrar o quanto o amava, explicar sua preocupação. Queria perguntar o que o pai acreditava ter visto e ouvido. Queria dizer que se sentia como se houvesse pisado num montinho de terra e descoberto que na verdade se tratava de um vulcão. Queria perguntar o que significava “núpcias”.

O que acabou, dizendo foi:

— É. Obrigado. Acho melhor eu ir andando. Depois mando uma carta.

— Há de passar alguém que possa ler para a gente — entusiasmou-se Lezek. — Tchau, meu filho.

O velho assoou o nariz.

— Tchau, pai. Eu apareço qualquer hora — prometeu Mort. Morte tossiu com discrição, embora o som parecesse o estalido de uma viga antiga, cheia de besouros.

— É MELHOR IRMOS ANDANDO — considerou. — MONTE, GAROTO.

Enquanto Mortimer subia na pomposa sela prateada, Morte se inclinou e apertou a mão de Lezek.

— Obrigado — disse.

— No fundo, ele é um bom menino — notou Lezek. — Só é um pouco sonhador. Acho que todos fomos jovens um dia.

Morte considerou aquilo.

— NÃO — contestou. — ACHO QUE NÃO.

Pegou as rédeas e virou o cavalo em direção à estrada da Borda. Do lugar em que estava, atrás do vulto de preto, Mortimer acenou em desespero.

Lezek retribuiu o aceno. Então, quando o corcel e os dois cavaleiros desapareceram de vista, baixou a mão e olhou para ela. O aperto de mão... fora estranho. Mas, por algum motivo, ele não conseguia lembrar exatamente por quê.

Mortimer ouviu o barulho das pedras sob os cascos do cavalo. Depois vieram os baques suaves sobre a terra batida da estrada e então não houve mais som algum.

Ele olhou para baixo e viu a paisagem se estender à distância, na noite cortada pelo luar prateado. Se caísse, a única coisa em que bateria seria o ar.

Mortimer redobrou a força com que se agarrava à sela.

Então Morte perguntou:

— ESTÁ COM FOME, GAROTO?

— Estou, sim senhor.

As palavras lhe surgiram direto do estômago, sem intervenção do cérebro.

Morte assentiu e parou o cavalo. O animal ficou parado em pleno ar, com o grande panorama circular do Disco reluzindo abaixo. Daqui e dali vinha o brilho dourado de alguma cidade. Nos mares quentes próximos à Borda, havia uma leve fosforescência. Em alguns vales mais profundos, a luz represada do Disco, que é lenta e ligeiramente pesada[1], evaporava como fumaça prateada. Mas era ofuscada pelo brilho que subia da própria Borda até as estrelas. Imensos raios de luz tremeluziam no breu da noite. Um enorme muro dourado cercava o mundo.

— É lindo! — exclamou Mort, em voz baixa. — O que é isso?

— O SOL ESTÁ DEBAIXO DO DISCO — informou Morte.

— É assim todas as noites?

— TODAS AS NOITES — confirmou Morte. — A NATUREZA É ASSIM.

— E alguém sabe?

— EU. VOCÊ. OS DEUSES. MARAVILHA, NÃO?

— Minha nossa!

Morte se inclinou sobre a sela e contemplou os reinados do mundo.

— NÃO SEI QUANTO A VOCÊ — DISSE. — MAS EU DEVORARIA UM BOM PRATO AO CURRY.

Embora já passasse muito da meia-noite, a cidade gêmea de Ankh-Morpork esbanjava vida. Mortimer achara Serra Ovelha movimentada, mas, comparada à confusão da rua em que estava agora, a cidade era um necrotério.

Poetas já tentaram descrever Ankh-Morpork. Não conseguiram. Talvez seja a energia do lugar, ou então porque uma cidade com um milhão de habitantes e sem esgoto seja demais para os poetas, que naturalmente preferem margaridas. Bem, digamos apenas que Ankh-Morpork é tão cheia de vida quanto queijo velho em dia de calor, tão ruidosa quanto palavrão em igreja, tão iluminada quanto mancha de óleo em superfície de água, tão colorida quanto um hematoma e tão alvoroçada, diligente e ativa quanto cachorro morto em formigueiro.

вернуться

1

Quase tudo se locomove com maior rapidez do que a luz do Disco, que, ao contrário da luz comum, é tranqüila e vagarosa. De acordo com o filósofo Yin Gha No, a única coisa mais veloz do que a luz comum é a monarquia. Ele raciocinou assim: não podemos ter mais de um rei, e a tradição exige que não haja nenhum intervalo entre dois reis, de modo que, quando um rei morre, o trono deve instantaneamente passar para o herdeiro. É de se presumir, disse ele, que exista alguma partícula elementar — rêions ou talvez rainhons — que realize essa função, mas é claro que às vezes a sucessão não acontece, se defrontada com uma antipartícula, ou repúblicon. O ambicioso plano do filósofo de usar a descoberta para enviar mensagens — recorrendo à cuidadosa tortura de um rei, a fim de modular os sinais — nunca chegou a ser completamente explicado, porque a essa altura o bar fechou.